Noite de Segunda-feira, 8 para 9 de Outubro 2001
I O Reencontro de outras vidas
Estou a acabar de almoçar. [...] Depois, com a boca cheia e o caderno de apontamentos na mão, venho para junto do Alexandre e começo a escrever as informações, extensas, que ele me dá sobre os locais ideais para ir comer. Ele só me dá indicações dessas. A seguir, começamos a andar. Avançamos por um bosque, onde há muitas árvores de fruta. São nespereiras, com nêsperas pequeninas, que ainda não se podem comer. Eu fico sempre espantada como ainda se consegue encontrar no Porto, ao virar de uma esquina, no fim de uma rua, o campo. Aquele bosque é um terreno de passagem, de ninguém. Assim está, sabe-se lá, também, há que séculos. Numa cidade que já entrou no século XXI.
Depois estamos na rua onde fica o forno do pão. É uma rua pequena e medieval. Há muita gente a entrar e a sair daquele edifício, onde se fabrica e vende o famoso pão. A loja fica no 1º andar. Subimos. Ali sai-me ao caminho a dona do forno do pão. É uma mulher idosa, de traços firmes. É uma mulher do povo com um olhar franco e firme. Ela abraça-se a mim e põe-se a chorar. Eu não a conheço:
– És mesmo tu! Oh, que alegria. E estás tão bonita como sempre! – Exclama ela, apertando-me nos seus braços e afastando-me um pouco para me olhar uma e outra vez.
Eu sinto-me comovida com estas demonstrações. Mas o facto é que continuo a não reconhecer a mulher. Ela diz-me:
– Já vivemos tantas vidas!
Ela recorda-se de mim de outras vidas. E recorda-se particularmente de mim, diz, de uma última reincarnação em que teríamos estado mais próximas. Tenho vontade de chorar, mas continuo a dizer-lhe, com toda a franqueza, que não me recordo de nada. Ela diz que eu também tinha nascido mulher, nessa última vida a que se está a referir.
II O Homem africano que cometeu um crime
Depois há um homem, africano, que é preciso esconder. Ele cometeu um crime. Por uma razão qualquer as pessoas do Forno do Pão, entre as quais eu já me incluo, estão prontas a escondê-lo. Havia dois criminosos inicialmente. Um deles, contudo, julgou poder escapar melhor roubando a identidade do outro. Esse respondeu-lhe:
– Para todos os efeitos, mesmo que troques de identidade comigo e que me mates, ah!ah! ah!, eu também estou fichado. Ficas, à mesma, com a identidade de um criminoso procurado.
O outro, no entanto, não quis saber destes argumentos lógicos e matou-o, apoderando-se da sua identidade referenciada em termos criminais. E depois, para despistar a polícia, tinha ficado escondido na cave do Forno do Pão. Como o Forno do Pão era próximo da fronteira, resolvemos levá-lo para lá. Ali íamos dar-lhe dinheiro e ajudá-lo a ganhar o mundo.
II O Criminoso e o Homem do Forno do Pão
Há polícia sempre perto, a vigiar a casa. Metemo-lo dentro de uma saca de batatas e levamo-lo para o jipe, onde colocamos mais sacas de batatas. Um dos polícias espreita para dentro do jipe, mas não desconfia de nada. Pergunta ser está tudo bem e pede-nos para termos cuidado. Ninguém desconfia de nós.
Perto da fronteira soltamos o criminoso e damos-lhe dinheiro. Ele está bem vestido, mas tem os olhos cheios de ódio. Passamos por um café com uma esplanada perto do bosque onde ele tem de se embrenhar para passar a linha da fronteira. Ele passa junto de uma mesa onde estão um homem e uma mulher, jovens, e mete-se com a mulher em termos inqualificáveis. O homem olha para ele estupefacto. Nós agarramos no criminoso por um braço e arrastamo-lo dali para fora. Estamos furiosos, o homem idoso e eu:
– Queres atrair as atenções? Queres ser apanhado antes de conseguir fugir? E queres que nós sejamos incriminados por te termos ajudado?
Começamos a andar pelo bosque. O homem do Forno do Pão está realmente zangado. Eu pergunto ao criminoso se não aprendeu nada com esses três meses fechados na cave:
– Aprendi muito. Coisas ainda piores e muito mais nojentas.
Eu digo ao homem do Forno do Pão:
– Não podemos fazer nada. Ele é genuinamente mau. Não adiantou nada tudo isto.
O homem do Forno do Pão, que é mais velho e muito astuto, diz:
– Já calculava. Vim preparado para isso.
Então, chama o criminoso que vem a bambolear-se, com a sua roupa nova, e pede-lhe que se aproxime de nós. Eu sei que o criminoso, mal tenha uma oportunidade, vai tentar matar-nos. O homem do Forno do Pão, contudo, mal ele chega suficientemente perto, puxa de uma arma e dispara sobre ele, vários tiros.
Depois diz:
– É a única coisa que se pode fazer. Agora, deitamo-lo ao Rio e o Rio que o leve.