terça-feira, 2 de março de 2010

1994, A sense of ending

NOITE DE 14 PARA 15 DE MAIO DE 1994
Pelas ruas, multidões correm mais ou menos ao acaso.
Sigo uma dessas correntes. Estou numa cidade, num país, que não reconheço, embora me seja, de algum modo, familiar. Há uma certa agitação por todo o lado. Sintomas de guerra iminente. É preciso fugir. Atrás de mim, há um homem que me chama, insistentemente, de volta. É alguém a quem pertenço e que me pertence.  Penso que é o meu marido.
A terra é uma mistura de pequena cidade africana e vila portuguesa medieval. Tem ruas estreitas que desembocam em largos, e as casas são antigas. À volta o espaço é amplo, desamparado.
É um espaço africano.
Entramos num edifício grande, percorremo-lo apressadamente, e passamos pelas caves, aonde funcionam – e estão estranhamento em funcionamento! –, as cozinhas. Uma das cozinheiras insiste em fazer umas frituras que lhe saem muito mal e os seus ajudantes gozam com ela. A cozinheira, numa mistura de resignação e indiferença, continua a sua tarefa.

O país está mesmo em guerra total. Há milhares e milhares de pessoas em fuga. No entanto, e à revelia de todo esse caos, há situações que persistem. Como aquela cozinha, com todos aqueles trabalhadores a fazer aquela comida toda, como se nada fosse.
Atravessamos o edifício. Saimos. Continuo acompanhada.

Cá fora é o caos. Fugimos até que encontramos um outro homem, conhecido do meu marido. Paramos a conversar, rodeados de pessoas. Cresce a sensação de perigo. Mas eles continuam a conversar, encostados a um carro, como se nada fosse. Antes disso, e no alto de uma ladeira pela qual me arrastara penosamente, volto-me para trás. Destroçada. Choro amargamente pelos meus filhos, tão pequenos e perdidos no caos da guerra. Estou esmagada pelo desgosto e pela minha impotência
E agora toda a gente sabe que há um grupo de guerrilheiros que vêm a correr para a cidade, que está a ser atacada por todos os lados.
O meu peito dói-me, estala de dor. A dor é muito fisica.
Entretanto, as pessoas que nos rodeiam, arranjam-nos transportes e de imediato o segundo homem dá-nos indicações para entrarmos no carro dele, onde só consigo entrar – tão mal arrumado está! – por trás.
Não conseguimos fugir à primeira: ficamos encurralados na praça, rodeados de adolescentes fardados, rapazes e raparigas, a tentarem virar-nos o carro. Gritam, insultam, cospem, enlouquecidos. Estamos ao lado de uma estação de caminhos-de-ferro.
Sinto uma terrível falta de ar. O meu marido deixa-me respirar por uma nesga da porta.
Continuo a sentir-me extremamente protegida por ele. Entretanto surge em cena um homem mais velho que apita e dá ordem aos miúdos que corram a apanhar um comboio que acaba de entrar na estação.
E eles deixam-nos finalmente em paz.

Andamos muito. Atravessamos campos africanos (savanas) ,aonde as casas são europeias, e pequenas povoações totalmente destruídas. Os únicos seres vivos que avistamos,  fugazmente, nas ruínas são crianças.
Chegamos então a uma casa de madeira, intacta.
Recebe-nos uma mulher. Julgo que é nossa amiga. A mulher diz:
"Aqui vocês estão em segurança."
Ela é forte e optimista. Ela é carinhosa e faz-nos sentir bem, porque nos tranquiliza. Ela diz que ali a guerra ainda não chegou. Ou se chegou, já se foi embora.
Falo-lhe nos meus filhos. A dor  tão forte que me esmaga o peito, numa agonia sem lenitivo.
Então aparece-me o Lula. Ele safou-se muito bem. Diz: "vesti-me de rapariga, e não me fizeram mal." Depois dá-me noticias dos outros, que "também estão bem." Fico num tal estado de felicidade que não consigo reagir.
Entretanto sou avisada pela mulher que o dinheiro perdeu o valor, porque se tornou demasiadamente valioso e simplesmente deixou de existir. "As pessoas têm que encontrar outro tipo de economia, formas novas ou muito antigas", diz ela.
Fico a pensar no que ela me diz.

Imagem: «The Sense of an Ending: Studies in the Theory of Fiction», reproduzida a partir de
http://images.google.pt/imgres?imgurl=http://www.unizar.es/departamentos/filologia_inglesa/garciala/images/apocalypse.jpg&imgrefurl=http://www.unizar.es/departamentos/filologia_inglesa/garciala/otros/kermode.html&usg=__TPLkjY8V74lZIghlKNyhuXZ176E=&h=281&w=500&sz=24&hl=pt-PT&start=44&um=1&itbs=1&tbnid=4YoKnkXhoNAPJM:&tbnh=73&tbnw=130&prev=/images%3Fq%3Dapocalypse%26start%3D40%26um%3D1%26hl%3Dpt-PT%26sa%3DN%26rlz%3D1T4TSEH_pt-PT___PT363%26ndsp%3D20%26tbs%3Disch:1

Os Enamorados


NOITE DE 14 PARA 15 DE JUNHO DE 1998
Estou junto de um muro, parece o balcão de um bar, só que é na rua. Em cima desse muro há vários baralhos de cartas de tarô. São muito bonitos. E são da loja em frente do muro-balcão, só que a loja está fechada porque é hora do almoço. E eu estou espantada porque qualquer pessoa os pode levar. Sento-me num banco alto e fico a olhá-los, e pego no que está em cima. É uma edição de luxo. É dourada, um dourado de ouro velho. Na capa tem os Enamorados.
Folheio as cartas como se fossem um livro. E são um livro. Vejo algumas definições das lâminas. Têm correspondência com as cartas de jogar.
Antes há um homem. É jornalista, e está a correr por uma estrada de alcatrão. Ao lado dele está uma criança que também corre. Ele ri-se. E tira os sapatos. Só tira um. E desaperta a gravata e a atira-a fora. Diz:
“Fui director de tantas coisas, e agora não quero nada. Não estou nada interessado na minha vida anterior. Agora sou livre.”
E ri, e corre como se brincasse, pelo chão de asfalto, só com um pé calçado. E eu vou atrás dele. Ele quer mostrar uma coisa às pessoas. E quando pára, inesperadamente, estamos diante de um lago de água fresca, onde se pode tomar banho e mergulhar. Este é um segredo que ninguém conhece, porque estamos fora da cidade. É um paraíso por explorar. E ele quer que todos saibam disso.
E ali está ele, a brincar na água, tão próximo de uma estrada normal da cidade normal.
Sai da água, com a criança.É um rapaz de sete anos. E vão para a estrada pedir boleia. Eu sigo-os. E o que acontece é que ninguém pára, e ele fica um pouco espantado. Na verdade, tal como ele imagina as coisas, havia de parar logo um carro para os levar de volta, tanto mais que ele está molhado.

Depois, atravessa a estrada, lá pára então um carro e leva-os, e eu volto para o meu banco, diante do muro, e penso, então, roubar o baralho dos Enamorados.
Depois vejo o homem, o jornalista, de pé contra outro muro. Estão a prendê-lo pelos polegares que atravessam uns orifícios no muro, e pelos pés.
Depois estou no Algarve, a contar-lhe o que tinha visto as pessoas fazerem-lhe. Mas ao mesmo tempo sei que o fizeram a uma projecção, a uma emanação dele, porque ele tem o grande poder de dar às pessoas essas ilusões.
Assim, ele está ali, em liberdade, a seguir a sua estrada.
Eu digo: “estavam a prender aquilo que pensam que tu és”.
E conto-lhe que lhes roubei o baralho de tarô. Ele diz que não foi uma boa ideia:
“É como se trouxesses, de lá, essa energia, dentro da tua carteira.”
E eu pergunto:
“Devo fazer o quê?” E ele diz,
“se atirares com elas pela janela, as cartas têm poderes para se organizar de novo, todas juntas, num baralho. E tu ficas livre."