NOITE DE 14 PARA 15 DE MAIO DE 1994 Pelas ruas, multidões correm mais ou menos ao acaso.
Sigo uma dessas correntes. Estou numa cidade, num país, que não reconheço, embora me seja, de algum modo, familiar. Há uma certa agitação por todo o lado. Sintomas de guerra iminente. É preciso fugir. Atrás de mim, há um homem que me chama, insistentemente, de volta. É alguém a quem pertenço e que me pertence. Penso que é o meu marido.
A terra é uma mistura de pequena cidade africana e vila portuguesa medieval. Tem ruas estreitas que desembocam em largos, e as casas são antigas. À volta o espaço é amplo, desamparado.
É um espaço africano.
Entramos num edifício grande, percorremo-lo apressadamente, e passamos pelas caves, aonde funcionam – e estão estranhamento em funcionamento! –, as cozinhas. Uma das cozinheiras insiste em fazer umas frituras que lhe saem muito mal e os seus ajudantes gozam com ela. A cozinheira, numa mistura de resignação e indiferença, continua a sua tarefa.
O país está mesmo em guerra total. Há milhares e milhares de pessoas em fuga. No entanto, e à revelia de todo esse caos, há situações que persistem. Como aquela cozinha, com todos aqueles trabalhadores a fazer aquela comida toda, como se nada fosse.
Atravessamos o edifício. Saimos. Continuo acompanhada.
Cá fora é o caos. Fugimos até que encontramos um outro homem, conhecido do meu marido. Paramos a conversar, rodeados de pessoas. Cresce a sensação de perigo. Mas eles continuam a conversar, encostados a um carro, como se nada fosse. Antes disso, e no alto de uma ladeira pela qual me arrastara penosamente, volto-me para trás. Destroçada. Choro amargamente pelos meus filhos, tão pequenos e perdidos no caos da guerra. Estou esmagada pelo desgosto e pela minha impotência
E agora toda a gente sabe que há um grupo de guerrilheiros que vêm a correr para a cidade, que está a ser atacada por todos os lados.
O meu peito dói-me, estala de dor. A dor é muito fisica.
Entretanto, as pessoas que nos rodeiam, arranjam-nos transportes e de imediato o segundo homem dá-nos indicações para entrarmos no carro dele, onde só consigo entrar – tão mal arrumado está! – por trás.
Não conseguimos fugir à primeira: ficamos encurralados na praça, rodeados de adolescentes fardados, rapazes e raparigas, a tentarem virar-nos o carro. Gritam, insultam, cospem, enlouquecidos. Estamos ao lado de uma estação de caminhos-de-ferro.
Sinto uma terrível falta de ar. O meu marido deixa-me respirar por uma nesga da porta.
Continuo a sentir-me extremamente protegida por ele. Entretanto surge em cena um homem mais velho que apita e dá ordem aos miúdos que corram a apanhar um comboio que acaba de entrar na estação.
E eles deixam-nos finalmente em paz.
Andamos muito. Atravessamos campos africanos (savanas) ,aonde as casas são europeias, e pequenas povoações totalmente destruídas. Os únicos seres vivos que avistamos, fugazmente, nas ruínas são crianças.
Chegamos então a uma casa de madeira, intacta.
Recebe-nos uma mulher. Julgo que é nossa amiga. A mulher diz:
"Aqui vocês estão em segurança."
Ela é forte e optimista. Ela é carinhosa e faz-nos sentir bem, porque nos tranquiliza. Ela diz que ali a guerra ainda não chegou. Ou se chegou, já se foi embora.
Falo-lhe nos meus filhos. A dor tão forte que me esmaga o peito, numa agonia sem lenitivo.
Então aparece-me o Lula. Ele safou-se muito bem. Diz: "vesti-me de rapariga, e não me fizeram mal." Depois dá-me noticias dos outros, que "também estão bem." Fico num tal estado de felicidade que não consigo reagir.
Entretanto sou avisada pela mulher que o dinheiro perdeu o valor, porque se tornou demasiadamente valioso e simplesmente deixou de existir. "As pessoas têm que encontrar outro tipo de economia, formas novas ou muito antigas", diz ela.
Fico a pensar no que ela me diz.
Imagem: «The Sense of an Ending: Studies in the Theory of Fiction», reproduzida a partir de
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