Noite de 10 para 11 de Outubro 2001
I Trabalho de parto
Vou dar à luz. Sou uma Rainha-mãe de cabelos cinzentos, em trabalho de parto e estou no século XIV. Chamo a minha aia. Tenho dores insuportáveis, mas ela, no processo de me ajudar, parece que ainda as agrava mais. O palácio está completamente silencioso. A minha aia diz:
– Temos de fugir. Vêm aí para te matar. A ti e ao teu filho.
– Uma mulher não pode fugir enquanto está a dar à luz! – digo eu.
– Pode, se quiser salvar a vida dela e do filho – responde a aia.
Como é que tudo começou? Eu estou a escolher livros num alfarrabista. Já tenho uma série deles quando pego em três volumes, antigos, de autores diferentes, bem encadernados, e saio com eles sem os pagar. Tenho consciência do meu roubo, e sinto-me tentada a voltar atrás e colocá-los de novo na mesa de ponde os tirei. Eles estavam expostos na rua. Contudo, decido sentar-me e apreciar bem o que levo, antes de tomar alguma iniciativa. E é isso que faço. Folheio os livros, um por um. Estão muito estragados por dentro. Por muito que pudesse gostar dos livros, e nem sequer é esse o caso, neste estado não me interessam de todo.
E agora estamos junto do solar de uma amiga minha que está a catalogar o recheio da casa para não ter problemas com os irmãos. Ela está ligeiramente irritada. Diz:
– Vocês não imaginam as cenas que eles são capazes de fazer por causa de umas colheres de prata!
Decido devolver os livros. Mas agora o alfarrabista é dentro de um edifício e não ao ar livre. Ele faz questão de me mostrar um livro lindíssimo que acha que eu devo gostar. É uma obra medieval. E tem ilustrações a três dimensões. São figuras recortadas nas páginas do lado esquerdo, e que se evidenciam em janela. Virando um numero de páginas suficientes, ao mesmo tempo, a janela deixa ver cenas quase em animação.
II Em perigo de vida
Vejo assim uma janela ogival, por detrás da qual se entrelaçam lanças e se enfrentam lanceiros. Com o virar das páginas as figurinhas ganham mesmo uma ilusão de movimento filiforme. E agora, a dar à luz, é exactamente nesse cenário que me encontro. Em perigo de vida, segundo a minha dinâmica aia.
Ela guia-nos através de corredores desertos e escadas. As escadas e as paredes são de madeira maciça. Finalmente chegamos ao último andar. Ali ficam os aposentos das criadas. Ela faz-me despir as minhas roupas e veste-me as delas. Agora também eu pareço uma criada, com uma touca branca a esconder-me o cabelo cinzento, e com roupas pesadas e escuras a esconder-me a barriga. A minha saia é preta, franzida na cintura e por cima tenho uma blusa do mesmo tecido:
– Vão descobrir que estou grávida! – digo eu.
A aia tranquiliza-me:
– Vão é achar que Vossa Majestade é gorda e pesada como qualquer criada a partir de certa idade. E agora, desculpe, mas vou ter de a tratar de igual para igual. Temos de parecer íntimas.
Os passos dos homens aproximam-se:
– Estão quase aqui – diz a aia.
E nesse momento eles entram. Estão armados, de lanças e espadas. Se soubessem quem eu era, degolar-me-iam mesmo ali. Eu própria não me reconheço fisicamente, como Rainha-mãe, embora saiba que sou eu própria. Exteriormente nem o tom de pele, nem o corpo, nem o cabelo, nem as feições são as minhas, tal como estou habituada a reconhecer-me. Contudo, sei que sou a mesma, indubitavelmente.
Os homens vasculham o quarto e os anexos onde estamos e onde vive a minha aia. Mal olham para mim. Eu chego à janela e olho para o parque. É muito bonito, e tem uma estrada larga, de saibro, até ao portão. É um parque muito grande, dali só se vê a parte que dá para a entrada. Os homens perguntam-me se não sei de nada:
– Vi duas pessoas a correr para a saída do parque – respondi, sempre a olhar pela janela – uma delas caminhava com dificuldade.
Os homens lançam exclamações em voz surda:
– Claro! É a única forma de escapar. É preciso coragem e atrevimento, porque é muito arriscado, assim em plena luz do dia fugir pela entrada principal, mas ela tem as duas coisas. Temos de correr para a apanhar.
Perguntam-me há quanto tempo é que eu vi isso, e respondo que foi mais ou menos há uma hora e meia.
Então eles saem e nós respiramos de alívio. Contudo, em nenhum momento senti medo, ou qualquer coisa parecida, a não ser talvez nos primeiros momentos em que a aia me avisou, e na altura em que os passos dos homens se tornaram audíveis antes de entrarem nos aposentos. Depois, tudo se passou como se fosse, de certa forma um jogo, cujas etapas se foram cumprindo com mais ou menos emoção.
III a negra idosa muda as fraldas do bebé
Agora, na sala do lado há uma negra, idosa, a mudar a fralda a um bebé que é neto dela. Mas ela não tem fralda nenhuma. Digo:
– Acho que tenho ainda, cá em casa, algumas. Vou procurar e depois dou-lhas.
Não me lembro do resto.