domingo, 4 de julho de 2010

O centro comercial, o barco de recreio e a cidade antiga

Noite de 16 para 17 de Setembro 2001
Estou a descer uma rua e entro num Centro Comercial. É domingo, é noite e está tudo muito deserto. Dentro do edifício, há ruas interiores e o espaço abre-se para um vasto e esmagador conjunto de edifícios muito modernos, em vidro em tons azulados. Ali não há vida. Imagino que em horário de funcionamento, pode haver muita gente, mas são só escritórios. Nem se vêm as montras das lojas. Pior: o tecto não abre para o céu, mas sim para um simulacro, em fibra de vidro, o que dá uma atmosfera asfixiante àquele lugar. Procuro a saída, e encontro-a guardada por portas de vidro circulares e porteiros. É muito mais fácil sair do que entrar. Há muita gente cá fora, mas só entra uma de cada vez. Pergunto a mim própria que tipo de mentalidade preside a uma estrutura daquelas que limita as suas naturais fontes de crescimento. Ou seja, quando se impedem os consumidores de aceder ao consumo, o que se pode esperar daquele negócio? Mas também me espanta que haja pessoas que se sujeitem a entrar assim, de mais a mais em lugares tão pouco atraentes.

Depois estou num barco de recreio. Num grande paquete. Alguém nos mostra, a mim e ao Otto os folhetos da viagem. Penso: afinal sempre escolhemos fazer um cruzeiro. Mas os folhetos que eu tenho em meu poder não dão qualquer informação sobre o barco, os espectáculos, as paragens. Só têm informações sobre os equipamentos de ginástica e os seus custos, por hora, por dia ou por passe. Depois estamos a ver filmes. Podemos seleccionar uma quantidade deles, em DVD.

Depois estamos numa cidade antiga, onde eu às vezes ia, e o Otto leva-me a um restaurante que é numa casa particular. Podemos escolher a sala onde comer e tudo. Ele diz que conhece vários assim. Cada um com várias salas. As salas são decoradas como nas casas humildes. Não sei porquê, mas aquilo está associado a comida caseira e boa, porque sai fora dos circuitos comerciais da massificação. Além disso, parece-me que o Otto, ou a pessoa com quem estou agora, é amigo do dono, que é um senhor bem disposto e de meia-idade. Acho que há mais amigos que se vêm reunir a nós.
Depois estou a escrever ao meu tio Roger, numa camisola de algodão. É difícil escrever assim, mas o efeito é engraçado. Algumas palavras são substituídas por símbolos. Ele tinha feito uma comparação entre mim e ele, que me era favorável, admito, em termos da opinião que as pessoas, nesta cidade antiga, podem ter a meu respeito, mas sinto-me na obrigação de o corrigir. Não porque eu não tenha boa opinião a meu respeito, mas porque os dados das nossas vidas são muito diferentes. Para quem vê de fora, a opinião pode ser muito diferente, e eu nem sequer acho estranho que o seja. Tanto mais que estamos numa cidade antiga, onde valores antigos, ligados às aparências, ainda vigoram.
Mas sim, concordo com ele: somos parecidos no motor da nossa coerência íntima. Escrevo-lhe mais ou menos isto, na camisola encarnada que lhe vou mandar. E digo as mesmas coisas ao telefone, porque, afinal de contas, nós os dois estamos a conversar.

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