segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Ouro, muito ouro escondido por ali

Noite de 26 para 27 de Fevereiro de 1999
No campo, espalhados entre as árvores, estão os lobos e também um urso. Uma rapariga chinesa tenta montar um avião. As asas do avião são de plástico e encaixam-se, peça a peça. Por isso e à medida que a rapariga as monta, vão-se aqui e ali, desenfiando nos seus componentes. E ela com aquela paciência chinesa de rapariga chinesa, volta a pôr as patilhas no lugar das ranhuras, e o trabalho prossegue.
E o homem diz:
“Detesto dizer isto, mas para levantares voo temos de ir já embora, ao encontro do Inverno, por causa dos ventos. É preciso apanhar ventos fortes para levantares voo.”
E então entramos todos para o carro. O carro é uma plataforma de madeira aberta, como alguns vagões de carga de algumas composições de comboio. Os cães saltam lá para dentro, menos um que fica ao pé de uma árvore. Esse não se quer ir embora e está ofendido. O urso salta para cima do estrado, e depois salta outra vez para o chão, para o outro lado do caminho e sobe a uma colina.
E eu penso “por este andar nunca mais daqui saímos”.

E o homem diz:
“Vamos mesmo ter de partir”.
O urso volta para dentro do estrado e o outro cão fica para trás. Agora o carro vai muito depressa. E entramos numa cidade, e essa cidade é da minha infância, embora diferente como acontece nos sonhos. E enquanto andamos, muito depressa, mas não tão depressa que seja perigoso, vejo pessoas a passearem os seus cães pelas trelas. Algumas levam vários cães ao mesmo tempo. Vejo dois cães a correrem, ao longe, atrás de nós, e penso:
“Um deles será o lobo que ficou para trás?”
Mas depois percebo que não, porque é muito mais pequeno e está com outro cão. Mas sei que ele não se perde de nós, esteja onde estiver, porque a cidade está mais próximo do que parecia.
[...]

E agora estou a subir a Rua da Misericórdia, já depois do Solar do Vinho do Porto. Um homem alto mete-se comigo. É quase noite. Acho-lhe graça, e estou com muita curiosidade de saber para onde é que ele me leva. Entramos para um pátio grande e nesse pátio há um edifício bastante velho. Agora quero-me vir embora, mas o homem é alto e muito mais forte do que eu. Quando estavamos dentro do quarto eu digo:
“Quero doces”
E ele sai para ir buscar-me doces, e eu vou à janela que dá para uma varanda, e penso:
“Vou saltar”
E salto. Mas é mais alto do que eu pensava, porque não é o primeiro andar, é o segundo. Tenho de passar pela varanda do andar debaixo e agarrar-me aos ferros, mas não me importo. Salto para o chão, começo a correr e a contornar o edifício para fugir dali. Mas  acabo por cair, praticamente, nos braços do homem, maso homem não me agarra porque tem os braços cheios de doces. E eu rio-me de nervos, porque ele tapa-me a saída, e começo a olhar a toda a volta para ver por onde posso fugir. Eu quero fugir dele.

Mas agora há muito mais gente naquele lugar. E alguém pôs a mesa, é uma mesa comprida onde se sentam várias pessoas. E é uma mesa quadrangular. Há uma rainha, sentada à cabeceira da mesa, do meu lado esquerdo. Eu estou a comer o doce que o homem me deu, e é um doce muito bom. À minha frente alguém come o mesmo género de doce. Comemos lentamente, a saborear, por prazer e sem fome. Algumas pessoas porém, comem vorazmente. Algumas comem com as mãos. A mesa está repleta de iguarias. A rainha come bem, mas sem pressa, e prova mesmo mais coisas do que nós. Mas o meu doce é grande, e quando chega ao fim eu não quero mais nada daquela mesa. Então  levanto-me e vou-me embora.

Contorno o edifício, mas agora no sentido oposto ao que tinha feito para fugir do homem. O edifício é rectangular, e na parte de trás há campo à nossa volta. Alguém diz que já pode revelar onde está escondido o ouro. Porque há muito ouro escondido ali. Por isso eu nunca me quis desfazer daquele prédio. E então, alguém que já morrera, ou estava a morrer, tinha transmitido o segredo à velha criada da família: o ouro estava todo no sótão.
E eu fico muito espantada porque o ouro esconde-se sempre no chão, sob a terra, em covas grandes e fundas. Então vamos ao sótão e levantamos as tábuas mas não encontramos lá ouro nenhum. E o forro do sótão é tão fino que eu penso:
“Aqui não é possível esconder ouro”,

E volto para a rua. Há cozinhas ao ar livre e está a chover. É uma chuvinha muito leve. E as cozinhas ao ar livre parecem cozinhas de acampamento, com o fogo dentro de pequenos muros de pedra, e as panelas tapadas, e uma delas ao lume, para a chuva não entrar dentro dos alimentos. As panelas são muito antigas e estão enegrecidas pelas chamas. E à minha direita, e à direita dessa cozinha, há um poço. E a criada velha está cozinhar. Eu acho que as cozinhas são fora de casa porque os edifícios são antigos e é preciso evitar o perigo do fogo. E pergunto à mulher idosa se a informação sobre o ouro está certa, ou se tinha sido correctamente transmitida, porque no sótão não há lá nada. E ela diz:
“O ouro deve estar sob a pia da água. É uma bacia em pedra.”
E eu digo:
“Não está lá nenhuma pia de água em pedra”.
E ela diz:
“Pois não, porque eu trouxe-a cá para fora, que fica muito melhor.”
E mostra-ma, e é uma estrutura antiga, parece retirada de uma igreja muito primitiva. Está escavada num bloco único de mármore. E eu digo:
“É muito bonita.”
E também gosto das panelas muito antigas e enegrecidas. Acho-as lindas. E a criada de família diz:
“Pois é, e a comida fica deliciosa feita assim.”

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