domingo, 22 de novembro de 2009

O Filho dos meus últimos dias

NOITE DE 9 PARA 10 DE MARÇO DE 1998
É o não esperado. O último Filho. Com ele nos braços devo sair do hospital ou da clínica sem que nos detectem. Não devem saber dele.
Meto-me no carro. Para que não o vejam acomodo-o na mala, mas tenho o cuidado de ver se fica confortável e seguro.
Sei que não vai chorar.
Dentro do carro dou indicações ao motorista. As ruas estão um pouco congestionadas e as minhas indicações são todas no sentido de evitarmos o trânsito, mas não estão muito certas. Mas o motorista – que é alguém que me é muito próximo – não se zanga comigo. Isso deixa-me um pouco espantada. Além disso, como guia muito bem consegue alterar o percurso sempre na altura em que se vai meter em engarrafamentos.

Depois estou numa farmácia. Há várias pessoas à minha frente. Não posso deixar que saibam do meu bebé. Penso:
«Porque tive este filho? [...] Eu não devia ter este filho, porque não fiz nada para isso.»
E estou muito perplexa.
O meu bebé está num carrinho, tapado com uma fralda. E começa a chorar. Tento que se cale, enquanto o embalo. Ele chora com mais força. Então, destapo-o e pego-lhe ao colo, ali, à frente de toda a gente. E cubro-o de beijos. É extraordinário porque ele corresponde-me. Penso:
«Os bebés, os recém-nascidos, não sabem dar beijos. E contudo, este bebé olha para mim como se tivesse consciência de si próprio, de mim, e do laço fortíssimo que nos liga.»
Agora já não me importo que me vejam com ele. Parece que passou o perigo. Abraço-o com um amor imenso. Penso:
«Este filho é o único realmente meu, e é o filho dos meus últimos dias. O não esperado, o que me conhecia antes de nascer.»
Depois fico um pouco triste porque penso que este filho já não me vai conhecer na minha juventude nem na minha beleza, como os outros. De modo que tenho de guardar os albuns de fotografias, para, quando ele crescer, me ver como eu era, ou como os outros me viram.
E agora estou a escolher coisas, e devia estar a escolher biberons, e leite, mas em vez disso estou a escolher perfumes. Os frascos são lindíssimos. A mulher da farmácia diz-me que cheire um e outro e depois diz:
- Não pensava vender este frasco, por isso até deixei que levassem a estatueta de cristal que fazia de tampa.
Mas mesmo assim o frasco continua a ser lindíssimo, e também tem tampa. Depois peço á mulher um anti-depressivo. Estou quase a dizer-lhe que é porque estou com uma depressão pós-parto, quando me lembro que não devo dizer a ninguém, por enquanto, que tive um filho. Então digo que é uma depressão menstrual. E começo a ver os frascos de anti-depressivos e são embalagens transparentes, com a sua fórmulo química organizada no interior como se fossem jóias, a cintilar com um fulgor extraordinário. As embalagens, não sei porquê, são hexagonais. E no seu interior transparente, organizam-se as cadeias de moléculas, que parecem feitas de pequenos rubis e esmeraldas e topázios, a brilhar, a brilhar.

Penso: «A medicina avançou extraordinariamente».
E a mulher da farmácia diz:
«Esta é uma conquista do século XXI.»
Então falo-lhe do meu filho. E digo que não estava mesmo à espera, e que achava tão improvável ter um filho.
E aquele filho não era filho de homem nenhum.

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