quinta-feira, 28 de dezembro de 2006

Os olhos verdes de Joshua estão cheios de riso


Vários sonhos, várias noites, Novembro e Outubro 1995
Sonho várias vezes com o Joshua. Os olhosverdes dele estão cheios de riso. De uma vez ele está escondido à entrada da minha casa, como se fosse um miúdo, a rir e a preparar-se para me fazer uma surpresa, ou pregar-me um susto, e ao mesmo tempo sem coragem para me enfrentar. Dizem-me que ele está ali, mas creio que não nos chegamos a encontrar.
Depois ele telefona-me e a chamada cai. Depois, noutra noite, noutro sonho, vejo-o passar por um corredor de uma casa. Ele está feliz e infeliz, porque primeiro passa um bebé, uma menina, e ele é o pai. E eu fico tão feliz por ver o bebé, e tão contente por ele. E dou-lhe os parabéns, mas vejo que ele está muito constrangido, e feliz a contra-gosto.
E noutro sonho, sonho que o Duarte me olha para as mãos e diz que eu continuo melhor, mas devia ir ter com o Gonçalo, seu irmão, médico homeopata, à casa de Sintra, para ele me ver e medicar. E cheira-me as mãos e dizia que apesar de estar muito melhor não estava ainda curada.
Eu vou para a casa de Sintra dele, no sonho muito maior e muito diferente da verdadeira. Esta casa está cheia de gente e tem muitos quartos. Num deles o telefone toca e uma criada atende e é para mim. É uma extensão de telefone muito antiga, e eu ouço com muita dificuldade o Joshua dizer, do outro lado, “vou ser pai”, e eu dou-lhe os parabéns, e ele está infeliz. Depois a chamada caí, ou é cortada, e ele tenta mais duas vezes falar-me, mas eu ouço a voz dele tão ao longe e tão sumida.
Saio desse quarto, e pelos corredores e no grande pátio interior, e nas salas e salões, há muito gente, e muita gente com crianças, porque é uma casa de família, com espaço para todos e aquele ambiente alegre, e ritual e tão leve porque há espaço e intimidade para todos. De um quarto sai um cão pequeno parecido com uma raposa, e a criada diz que ele tem de humor incerto, e eu pergunto se não será por estar sempre preso, no quarto do Miguel que vai lá ia muito pouco. O Miguel, no sonho, é o médico chamado Gonçalo. O cão dá uma volta à minha volta, e fica a cheirar-me os calcanhares. Não me mexo. Baixo-me para olhar para ele e o cão ferra-me os dentes na palma da mão esquerda. Continuo sem me mexer, sempre a olhar para ele, a pensar “não tenho medo de ti, sou capaz de te dar um pontapé que te atiro para muito longe, mas não quero fazer isso, portanto vê se me entendes e larga-me.” E ele não me magoa porque eu não ofereço resistência com a minha mão, de modo que ele só a prende, enquanto se vai parecendo cada vez mais com uma raposa, e eu continuo a falar com ele. Então ele larga-me a mão e eu vejo que está domesticado, apesar de ser agora, definitivamente, uma pequena fera.

segunda-feira, 18 de dezembro de 2006

A produtora, a biblioteca, o avião, a loja

NOITE DE 7 PARA 8 DE NOVEMBRO DE 1995
Na Produtora. A entrada é diferente. As escadas são largas, de mármore, e digo, quando estou a subir, "que maravilha, as outras eram tão estreitinhas e tão íngremes, estavamos sempre a pensar que podíamos partir uma perna." Lá dentro está tudo muito diferente, mas continua a ser a mesma. Vou dar um beijinho à Paula e estendo-me sobre a secretária dela para dar um abraço á Tinucha.
O chão é de mármore raiado, lajes grandes e muito bonitas. O mobiliário é high teck, e há uma janela grande, com um parapeito cheio de vasos de sardinheiras, onde me encosto a olhar para a rua.
Volto-me para trás e vejo o Pedro que vem ter comigo, e dá-me um abraço, e ficamos a falar, à janela.Depois vejo o Jorge e peço-lhe autorização para utilizarmos imagens da produtora para fazer o spot , e ele diz que evidentemente, sem problema nenhum.

Depois vou a uma biblioteca que tem muitos , muitos, muitos andares. E quase todos são debaixo do chão. Estou no 5º ou 6º da cave, mas quero ir à "literatura das origens", mas informam-me que devo descer muito mais, ao mais fundo, e o mais fundo é aí o 47º andar inferior. Sinto muito calor, e aquele peso opressivo de quem está a entrar profundamente dentro da Terra, e sente o mundo inteiro por cima de si.
Saio no andar que marquei e que é o último, penso, e entro numa biblioteca muito bem arrumada, com livros muito bonitos que quero levar, e objectos de arqueologia fac-similada que também gostava de ter, e recordo-me das lojas dos bons museus, mais ou menos como no British, e pego em várias coisas, e então o senhor que toma conta da biblioteca diz-me para começar mesmo pelas origens, que neste caso são a Bíblia, e livros dos primeiros tempos da Era Cristã, o que me causa alguma estranheza, porque pensava que as origens eram muito mais recuadas.
Há um livro que abro e tem uma gravura muito bonita, e um tanto bizantina com alguns laivos de gótico, representando Jesus Cristo e o diabo, sob o fundo de uma Cruz radiante, e aquela gravura referia-se á Tentação.

Depois vou numa avião e o avião vai a sair de uma cidade capital, acho que é Berlim. Olho pela janela e digo às pessoas que o avião está a voltar para trás, está mesmo a voltar, e é um avião de 17 lugares.
Perde altura e começa a fazer-se à pista numa auto-estrada, porque nem tem tempo de chegar ao aeroporto. O piloto diz às pessoas que vai voltar para trás, mas isso não vai alterar em nada o destino do voo, e não é caso para alarme.
Vejo o avião aterrar na estrada, no meio dos automóveis que, por sorte, se desviam, mas a situação, embora perigosa, é estranhamente desprovida de perigo real. O sentimento é de frustração pelo tempo que se perde
Depois o avião volta outra vez a subir, porque na estrada de emergência não há combustível, e ele precisa absolutamente de combustível. Olho para cima e comando as operações, porque há fios de alta tensão e o avião pode destruir-se neles, e esse é na verdade um perigo grande. Agora estou sentada a cavalo no avião, cá fora, a levar com o vento e a minha carteira está em risco de me cair do ombro, e eu própria estou muito mal sentada, e tenho medo de não me conseguir aguentar e desprender-me e cair. Alguém me diz para curvar a cabeça e o pescoço de forma a não acometer o vento directamente, da mesma forma que nos sentamos para andar de mota, acomodando-nos ao vento e não contra ele. De modo que consigo endireitar a carteira, e arranjar uma posição muito mais segura, e agarrar-me bem. Só penso no horror que vai ser morrer congelada, quando o avião ganhar altura. Mas a mesma pessoa diz que não corro esse perigo. O avião agora só vai voar à altura que está, relativamente próximo de terra. De modo que não faz frio, não corro perigo, e posso olhar para baixo, e ver a terra verde e castanha dos campos arados e bem cultivados, a deslizar por baixo de mim.
E depois estou em terra, á entrada de uma loja de alta costura, onde exprimentei, há tempos, um casaco que não cheguei a comprar. Todas as pessoas estão a fazer compras. Eu não tenho dinheiro. Mas também não estou a ver nada que me agrade muito. Então pergunto à minha mãe se acha que eu posso fazer compras e apresentar a factura à companhia de aviação para me compensar pelosdanos causados pelo incómodo da interrupção da vaigem, em vez de ir para os jornais fazer queixas deles, e a mãe diz que é óbvio que devo fazer isso mesmo. Então é um stress, quero despachar-me a ver as coisas, mas não encontro nada que goste, e vou entrando e saindo de salas com roupas de toilete, que não me agradam, e, de sala em sala, agora já acompanhada por uma empregada que já conhecia de ter comprado ali outras coisas, encontro finalmente o meu casaco, que a vendedora me traz mais o chapéu, duas peças que eu tinha visto, gostado, e escolhido faz tempo. Mas é um chapéu preto e branco, cheio de penas, e já não gosto de me ver com ele. Penso: como é que vou apresentar a factura à companhia? Se peço à loja para lhes ir cobrar não deve ser muito fácil, porque não me conhecem, e estou num país que não é o meu.Se deixo as coisas para mas mandarem quando a companhia lhes pagar, arrisco-me a demorar a recebê-las. Para pagá-las eu e levá-las já não posso, não tenho dinheiro. Mas tenho cartão de crédito. E é assim que faço.
E depois estou num estúdio e vai-se fazer um filme e parece que eu entro, ou pertenço ali, e encontro (transcrição indecifrável e inacabada)

domingo, 17 de dezembro de 2006

O cão mensageiro e os prédios todos iguais

NOITE DE 19 PARA 20 DE MAIO DE 1995
Estou em casa do Paulo. Ele abraça-me. Entra a Luísa. Tem olheiras fundas, e os olhos pisados, a pele baça, um ar desamparado. O Paulo vem do quintal e volta a abraçar-me. Ela olha e quando ele sai diz: «tenho de resolver esta paixão por este homem. Voltar a conquistá-lo. Tenho sido tão parva, os ciúmes cegam-me, imagina que cheguei a pensar que vocês tinham um caso. De facto estou doente, mas vou ultrapassar isto». Respondo-lhe por banalidades, digo-lhe que precisa, em primeiro lugar, de ficar de bem consigo mesma antes de tentar reconquistar o homem. Ela sorri, continua sentada a balouçar-se tranquilamente, mesmo quando ele volta de novo a abraçar-me.
Depois no quintal, que é de cimento, há umas lajes meio deslocadas, e debaixo delas vê-se água, e é daí que emerge um cão com dois sacos de compras na boca. Já no quintal o cão sacode-se, sem nunca largar os sacos, e depois avança para a porta da saída. Tento perceber se ele quer companhia ou comida, mas é evidente que ele quer é sair, como se tivesse uma missão. Abro-lhe a porta e fico a vê-lo, na rua, onde os prédios, agora, são todos absolutamente iguais, à procura da sua casa. Eu própria tento dar uma ajuda, tocando a várias campainhas. Nas janelas há crianças que criticam a cena, mais pelo incómodo de terem de vir ao intercomunicador explicar que não é a sua casa a que o cão procura. Grito-lhes que se estão preocupadas então falem com os pais delas para eles não voltarem a tratar o cão daquela maneira. Depois percebo que o cão encontrou o seu destino. Abre-se uma porta e ele entrega os sacos, que, por incrível que pareça, não estão molhados, nem o seu conteúdo estragado. A casa não é dos donos do cão. Ele é só um mensageiro. Mas agora estoueu na rua, e esqueci-me do numero da porta, e os prédios são todos iguais, e vou tocando, aliás só tento uma vez, e não é a casa, e por mais que tente não me lembro mesmo do número nem do lote. E penso, que estranho, afinal estava aqui agora e vim cá tantas vezes, e não encontro a casa. O seu lugar não me ficou na memória, como se tivesse sido apagado.

A festa de despedida, o camião cisterna e os brinquedos enterrados

26 PARA 27 DE FEVEREIRO DE 95
Toda a gente se vai embora. Há uma festa em casa da Paula. Ela e o Hendrik vão vender tudo e mudar de País. Ele explica-me que está só à espera de Janeiro que é a melhor altura para executar esse tipo de operações. Estou a ajudar à festa. Bebo um copo de uísque com coca-cola, mas pouco. A Paula chama-me a atenção para outros copos que estão cheios, à espera que eu os beba, e é como se me censurasse. Digo-lhe que não foi por descuido, mas não acabei ainda resto da minha bebida. Então dou um gole num copo pequeno, numa bebia alcoólica, muito amarga. Depois vou ajudar a arrumar copos vazios, mas é mais como se fosse uma obrigação do que uma ajuda de amiga. Sinto-me incomodada porque entretanto, num dos cantos do jardim onde a festa corre, cheia de convidados, vejo o Manuel sentado, como se não quisesse ver-me, porque eu estou com o Paulo e também não quero que ele perceba que estou ali a despejar uma bandeja cheia de cinzas, porque me sinto mais no papel de empregada do que de amiga. Depois preciso de ir buscar umas calças de seda que estão na costureira a fazer bainhas, e desço uma rua muito íngreme, depois de ter avisado na festa de que já vinha. À entrada da loja da modista vejo a Paula que vai entrar na casa da frente. Ela ri-se para mim, e faz um sinal de quem diz «já volto, mas não digas nada a ninguém».
Depois estou outra vez na rua e um amigo da Paula que veio da Holanda está a estacionar o carro. O filho dele sai. Tem nove anos. O carro, entretanto, começa a descair, e é quase impossível travá-lo. Junta-se gente. Estou com a criança ao lado, a ver. Entretanto o carro embate num grande camião cisterna, e as pessoas tentam segurá-lo para que não se enfie nas lojas. E tentam impedir que se fechem as portas do camião cisterna para ninguém ficar entalado. O camião mais ou menos rebenta e a água começa a inundar a rua. Pensei que ia ser assustador mas não é. A água não é tanta que faça uma inundação. Então o miúdo pede-me que o leve ao colo. Está pálido, assustado, e eu não tenho coragem de dizer-lhe que não. Pego-lhe ao colo, mas ele é grande e a rua é íngreme. Subo com alguma dificuldade, mas percebo que, mais do que colo o que ele quer é mimo, porque é extraordinariamente carente. Abraço-o e conforto-o e ele encosta a cabeça com força contra o meu ombro.
Novamente no jardim. Já não há festa. Há crianças a brincar. Faço um buraco num recinto pequeno, com areia, uma espécie de caixote, e descubro que lá dentro estão imensos brinquedos novos, coloridos, de plástico. Penso: "que criança os escondeu aqui e se esqueceu deles? Que criança os poderá vir a reclamar se os der a este que trouxe comigo? E se ninguém reparar?"
Eu quero dar estes brinquedos à criança que está comigo.

domingo, 10 de dezembro de 2006

Uma faca suja de sangue, dois monstros assassinados

25 PARA 26 DE FEVEREIRO DE 1995
Uma casa, uma espécie de cave. É o quarto onde está um homem, cujo rosto não vejo, e uma mulher, alta, e uma menina, que apenas vejo de relance, nas sombras do fundo do quarto. A menina chora. Ainda não tem quatro anos.
Para não ouvir os gritos da menina começo a subir as escadas. As escadas vão-se iluminando à medida que as subo. E penso. "Se fosse agora, descia e com uma faca assassinava os dois, pegava na menina ao colo e fugia com ela." E, como se estivesse acordada, executo mentalmente esse propósito sem o visualizar.
Depois estou coberta de sangue. Tenho uma faca na mão, e sei que matei aqueles dois, e estou numa estrada. Eu estou com a menina. Eu sei que as imagens que vejo são imagens criadas pela minha vontade . Depois estou dentro de um carro.
A estrada é deserta, rodeada de campos desolados. Dentro do automóvel há duas pessoas, além de nós. Nós vamos sentadas no banco de trás. Penso que nos ameaçam, ou que ameaçam ameaçar-nos. Puxo da faca encosto-a ao pescoço do condutor e digo: "esta faca está suja de sangue porque acabei de assassinar dois monstros. Posso voltar a fazer o mesmo." Então somos atiradas, as duas, para fora do carro. Ficamos de novo sozinhas, na estrada desolada e deserta.

Eu, o indiano, o Paulo, o Joshua e muitos livros

22 PARA 23 DE FEVEREIRO DE 1995
Novamente um indiano. Sei que já o encontrei mais vezes, nos meus sonhos. Agor, aliás, é um casal de indianos, mas a mulher não está. Eu é que estou em casa com ele. Há um cão no quarto. É cachorro e brincalhão. Antes, penso, eu tinha combinado com o indiano ir à loja dele buscar coisas, ou fazer compras. Mas agora estou a brincar com o cão, que se agarra ao cinto do meu roupão, que é como que uma trança de seda. O cão morde e brinca com o cinto do meu roupão e acaba por desmanchar uma das pontas.
Olho para o Paulo, que está ao meu lado e peço-lhe que me conserte aquele cinto, mas faço-lhe o pedido com imensa cerimónia, e ele responde quase do mesmo modo, mas a rir. E garante-me que conserta o cinto.
Depois estou a atravessar uma rua, com ele, porque combinei ir encontrar-me com a Blá numa estação de Caminhos-de-Ferro, penso que no Cais do Sodré. O Paulo está ao meu lado. Ele vai carregado de livros. São tantos livros que quase lhe tapam a a cara. Depois eu ainda lhe passo umas coisas, que tinha na mão, para ele carregar com elas. Depois ele põe-me o braço por cima dos ombros.
Depois encontro o Joshua e fico tão contente, tão contente. Começo a contar-lhe dos sonhos que sonhei com ele. Ele, entretanto, diz que recebeu aquela minha carta, que lhe mandei no mundo de acordada, e pergunta-me se não lhe voltei a escrever, e eu digo-lhe, super animada, que continuo a escrever os meus sonhos, sempre. E ele diz-me que faz o mesmo há imenso tempo, e eu não acredito. E ele insiste, mas explica-me que não vai escrever nenhum livro, porque o negócio dos livros está mau, mas vai fazer um CD Rom. E repete que escreve sonhos desde o tempo em que andamos juntos, mas se calhar nunca me disse.

domingo, 3 de dezembro de 2006

Eu, o Paulo e o bebé do Paulo

18 PARA 19 DE FEVEREIRO DE 1995
Levo um bebé ao colo. Este bebé é do Paulo, mas aninha-se tão bem, e enrola-se tão confortavelmente nos meus braços, que não me pesa, e pelo contrário, é muito bom tê-lo assim. Depois vejo que tem a cara suja. E suja-me a mim, também, porque bolsa, e muito. Procuro uma casa de banho. Há duas, mas escolho a dos homens, onde está o Paulo a lavar as mãos. Entro e começo a lavar a minha cara, depois as minhas mãos, e só depois ligo ao bebé, que está feliz, no meu colo, a rir-se para o espelho.
Depois meto-me num eléctrico que é um comboio, ou o contrário. Primeiro eu estava à procura da estação, mas não era nada fácil encontrá-la. Depois ensinam-me. Entra-se por uma espécie de quinta, mas é uma quinta cheia de edifícios baixos, casas de habitação. Sinto, quando entro ali, que é como se ganhasse uma certa independência em relação ao que fica cá fora, uma vez que ninguém, a menos que eu queira, pode dar comigo ali.
Sei que me procuram. Fico contente por saber que só me encontrarão quando eu quiser.
Tudo aquilo é velho e mal conservado, mas, ao mesmo tempo, é bonito como se estivesse abandonado há muito tempo.
Entro no comboio que é um eléctrico. Adoro a viagem que ele faz. Calma e longa, através de uma cidade que é o Porto. O Lula vai ao meu lado. Engana-se a mexer num telemóvel. Ouve-se uma voz. É o pai do Zé. Olhamos um para o outro, como se ele não devesse ter feito aquilo. O Lula toma a iniciativa e simplesmente desliga o telemóvel.

Meu inimigo, minha sombra, minha fera, meu amor

17 PARA 18 DE FEVEREIRO DE 1995
Tenho de fugir sem pôr os pés no chão. Estou numa grande sala de baile, com lianas penduradas do tecto, a várias alturas. Agarro-me e vou passando de umas para as outras, dando balanço com o corpo e projectando-me sempre para diante. Tenho de fugir de um homem que me persegue. Faço-o com dificuldade. Então encontro um casal de meia-idade a quem peço abrigo em sua casa. É uma casa de passagem. Lá dentro há uma sala e um quarto. Eles acolhem-me e eu vou-me esconder no quarto do fundo.
Depois tocam à campainha, e sei logo que é ELE. Peço ao casal que diga ao homem que eu não estou ali, nem sabem de mim. Explico-lhes que devem ter muito cuidado porque ele é inteligentíssimo. Escondo-me no quarto, que tem uma porta que dá, também, para a rua. Para as traseiras da casa. Na porta há um olho-de-peixe.
Ouço, mal, a conversa entre o casal meu amigo e o homem que me persegue. Ouço a porta da rua bater e sei que ele se foi embora. Então ponho-me a espreitar pelo olho-de-peixe para o ver ir-se embora também deste lado da casa. Espreito e vejo só um corredor vazio ligeiramente deformado pela lente.
Afasto-me. Volto a olhar. Nada. Afasto-me e aproximo-me de novo, para ter a certeza de que ele se vai mesmo embora. E quando encosto, de novo, o meu olho ao olho-de-peixe sinto uma espécie de descarga eléctrica, um susto, um terror, porque, no mesmo instante, o meu perseguidor faz o mesmo do outro lado.
Num salto, enrolome no chão, junto à porta, e, a tremer, fico à espera que ele não tenha detectado a minha presença. Mas sei que, apesar de estar agachada junto da porta, não posso movimentar-me pelo quarto porque ele me detecta. E sei que há maneiras de ele conseguir espreitar, através do olho-de-peixe, e conseguir mesmo ver-me no ponto em que estou, embora não o faça por métodos habituais, até porque aquele dispositivo, em princípio, só serve para olhar de dentro para fora e não o contrário. Mas ELE consegue. Eu sei que ele consegue fazê-lo.
Ouço a sua respiração através da porta. Uma respiração pesada, de animal selvagem. Sei que ele nunca vai sair dali, nunca vai deixar de me perseguir, só vai parar quando me apanhar.
Tremo e aguardo.
Então, de repente, tomo uma decisão de instinto. Levanto-me e abro a porta ao meu inimigo, à fera que me persegue, ao homem ameaçador. E ele entra e eu atiro-me para ele e fundimo-nos num intensíssimo abraço.