domingo, 17 de dezembro de 2006

O cão mensageiro e os prédios todos iguais

NOITE DE 19 PARA 20 DE MAIO DE 1995
Estou em casa do Paulo. Ele abraça-me. Entra a Luísa. Tem olheiras fundas, e os olhos pisados, a pele baça, um ar desamparado. O Paulo vem do quintal e volta a abraçar-me. Ela olha e quando ele sai diz: «tenho de resolver esta paixão por este homem. Voltar a conquistá-lo. Tenho sido tão parva, os ciúmes cegam-me, imagina que cheguei a pensar que vocês tinham um caso. De facto estou doente, mas vou ultrapassar isto». Respondo-lhe por banalidades, digo-lhe que precisa, em primeiro lugar, de ficar de bem consigo mesma antes de tentar reconquistar o homem. Ela sorri, continua sentada a balouçar-se tranquilamente, mesmo quando ele volta de novo a abraçar-me.
Depois no quintal, que é de cimento, há umas lajes meio deslocadas, e debaixo delas vê-se água, e é daí que emerge um cão com dois sacos de compras na boca. Já no quintal o cão sacode-se, sem nunca largar os sacos, e depois avança para a porta da saída. Tento perceber se ele quer companhia ou comida, mas é evidente que ele quer é sair, como se tivesse uma missão. Abro-lhe a porta e fico a vê-lo, na rua, onde os prédios, agora, são todos absolutamente iguais, à procura da sua casa. Eu própria tento dar uma ajuda, tocando a várias campainhas. Nas janelas há crianças que criticam a cena, mais pelo incómodo de terem de vir ao intercomunicador explicar que não é a sua casa a que o cão procura. Grito-lhes que se estão preocupadas então falem com os pais delas para eles não voltarem a tratar o cão daquela maneira. Depois percebo que o cão encontrou o seu destino. Abre-se uma porta e ele entrega os sacos, que, por incrível que pareça, não estão molhados, nem o seu conteúdo estragado. A casa não é dos donos do cão. Ele é só um mensageiro. Mas agora estoueu na rua, e esqueci-me do numero da porta, e os prédios são todos iguais, e vou tocando, aliás só tento uma vez, e não é a casa, e por mais que tente não me lembro mesmo do número nem do lote. E penso, que estranho, afinal estava aqui agora e vim cá tantas vezes, e não encontro a casa. O seu lugar não me ficou na memória, como se tivesse sido apagado.

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