segunda-feira, 7 de junho de 2010

O Tigre e o voo dos pássaros


Noite de Sexta-Feira, 5 de Outubro 2001
Estamos dentro de uma casa de aldeia. Não conheço as pessoas, mas, naquele contexto, tudo se torna familiar. A casa não pertence particularmente a nenhum de nós, mas todos a podemos usar. Está  uma tigela de leite no chão. Um dos homens está a fazer queijo. Ele deita flores de nardo dentro da vasilha. Os outros estão a fazer outras coisas. Naquela casa recriam-se actividades antigas, como essa de fazer queijo de forma não industrial. Por qualquer razão, eu sou a única mulher. Ou talvez não haja razão nenhuma especial para isso.
Perguntamos ao homem que está a fazer queijo quanto tempo vai demorar para podermos comê-lo. Avançamos algumas datas e o homem ri das nossas previsões (de dias) e diz:
– Em duas horas o queijo está feito.
Como é tão rápido, resolvemos aproximar-nos da vasilha e ver como tudo se processa. O leite coalha e forma uma bola. Assim, no tempo que demora a dizê-lo. Agora o queijo está feito e é só preciso trabalhar aquela bola, espremer o soro, essas coisas.
Então toda a gente sai. Menos eu, e um rapaz que me pergunta se gosto de gatos. Eu sei que aquela pergunta encerra uma armadilha por isso respondo cuidadosamente que sim, mas não tenho tempo, nem vida, nem disponibilidade, actualmente, para ter animais. Os animais precisam de quem lhes dê atenção.
Ele diz que tem um poblema e que não é bem de um gato que está a falar. Na verdade, e através de um circuito ilegal, adquiriu um animal que não consegue tratar nem tem condições para tê-lo. Ele só quer que eu lho guarde uns tempos, ali, naquela casa, até descobrir como se há-de ver livre dele. O animal está dentro de uma caixa de madeira baixa, com grades e com uma tranca de ferro, poderosa.
Eu não quero, mas entretanto não tenho como recusar o pedido. Entretanto, olho para o tigre (ou será uma chita?) jovem que está dentro da jaula, dentro da casa. É um animal de beleza estarrecedora. O pelo, o corpo, os olhos. Sinto vontade de chorar ao vê-lo ali, naquela caixa grosseira. Além disso, o tigre (chita?) tem fome. Não comeu. O rapaz que me pediu para guardá-lo diz-me isso antes de se ir embora.
Eu não quero que o tigre me olhe. Nem que me veja. Sei que isso pode ligar-nos e eu não me sinto com força para assumir essa responsabilidade. Saio, para ir procurar comida para ele.

A casa de aldeia fica numa vila. As pessoas estão em suas casas ocupadas nos seus trabalhos, muitos deles artesanais. Estou num largo, diante da casa do sapateiro. Dentro da casa do sapateiro há crianças.
Mas enquanto ando à procura de comida para o tigre,  não consigo deixar de voltar atrás e ir a casa, várias vezes, para ver como tudo está. É muito estranho. O Tigre não rosna, nem está inquieto nem furioso, como seria de esperar. O Tigre, é um tigre genuinamente feliz, se esta palavra se pode aplicar a este animal, ainda por cima em tais condições. Aqui, no sonho, aplica-se contudo. Além disso, é um animal incrivelmente inteligente. Ele está a tentar abrir o ferrolho da jaula. Paciente e tenazmente.
Um dos homens tinha dito:
– A tranca é muito poderosa. É impossível conseguir abri-la.
Mas cada vez que entro em casa, o Tigre já resolveu mais uma daquelas etapas com as suas patas de veludo. A certa altura a tranca salta. Agora, basta ele dar um empurrão e a jaula abre-se. Encosto-me à porta e tento trancá-la com o meu peso.
Agora a caixa é toda de madeira, sem grades. Ele não me vê, eu não o vejo a ele. Apoio as minhas costas, com toda a força, à porta e tento contrariar o impulso do tigre para a abrir. Ele não se atira violentamente. Pelo contrário, dá impulsos suaves mas firmes. Ele não faz as coisas às cegas. E, reparo eu, não rosna, nem brame. Não parece um animal selvagem.
Com a força das minhas costas, e num esforço enorme, trago a caixa para a rua, e começo a empurrá-la pela rua acima. É um processo muito difícil, porque tenho, simultaneamente, de empurrar a caixa e de empurrar a porta para a manter fechada. Ninguém me ajuda e eu não quero gritar por dois motivos. Por um lado, porque já não tenho forças. Por outro, porque não quero que o tigre perceba o que se está a passar, e que com um pouco mais de energia pode abrir a porta.
Então vejo um polícia a conversar à porta de um café. O polícia vem ajudar-me quando lhe conto o que está a acontecer. Mas eu não quero que o tigre seja levado para uma esquadra, e depois para um jardim zoológico. Estou num dilema terrível. Eu e o Tigre (ou a chita?) já temos uma ligação. Sinto-me profundamente ligada a ele. Quero devolvê-lo ao seu mundo. O polícia tranquiliza-me: o tigre vai ser entregue aos cuidados de um grupo de Defesa da Vida Natural, com quem ele trabalha, e que é um departamento da sua esquadra.

Então o tigre solta-se.

Não sei como foi, mas agora está livre. Nunca vi uma criatura tão bela e tão feliz. Ele corre e salta pelo prazer de correr e saltar e estar vivo. Ele salta de uma maneira inconcebível, à altura do voo dos pássaros. Os seus saltos são de uma beleza geométrica, pura e indizível.
Sei que ele está com fome, mas ao contrário do que seria de esperar, a sua primeira acção não é atacar ninguém à procura de comida. É sentir, literalmente, a alegria da liberdade.
Sinto lágrimas a correr-me pela cara abaixo. Digo ao polícia:
– Vê? Como se pode prender um animal destes? Como se podem meter animais assim em jaulas e jardins zoológicos? É um crime.
Agora, estou com os elementos da Brigada da Conservação da Natureza. Peço-lhes comida para dar ao tigre. Um deles tira de um cilindro de metal, a baixíssimas temperaturas, uma caixa de tampa amarela que tem bisnagas de comida para tigres. Está tudo enevoado por causa do frio, mas, nas bisnagas, a comida, um concentrado fortíssimo de proteínas, está à temperatura ambiente.
O homem diz:
– Meta a bisnagas entre as grades e tente meter a comida na boca do tigre.
Respondo que prefiro pegar-lhe ao colo. Então, estou a agarrar numa criança de três anos que me estende os braços como se estivesse a abrir as asas. Meto-lhe a comida na boca. Sei que vai voltar a ser tigre e que vai ser devolvido à sua natureza. Mas os homens que vão tratar disso prometem fazê-lo de uma forma não traumática. Sei, também, que vou sentir a falta dele para sempre.
A criança chupa gulosamente a pasta que sai da bisnaga. A cara da criança está suja com bocados de comida que lhe escorrem dos cantos da boca. Ela come sofregamente porque tem muita fome, mas está muito bem disposta.

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