quinta-feira, 17 de junho de 2010

A aranha voadora e a filha do vagabundo

Lisboa, noite de 16 para 17 de Junho 2010
Há muita vigilância sobre estudantes. Indirectamente, eu pertenço ao grupo dos vigiados. Há polícia por todo o lado e sente-se a tensão no ar.  Depois os estudantes aparecem montados num aranha gigantesca, mesmo muito gigantesca, tipo eléctrico com vários abdomens a servir de atrelados. É uma aranha muito mansa, mas está muito aborrecida. Isso vê-se pela expressão dos seus olhos multifacetados e inexpressivos. Eles desfilam pela rua principal da cidade, em cima dela, e eu estou no meio da multidão que os observa.  Os policias sentem-se desconfortáveis. Não sabem como agir. Diz-se que aquela aranha também sabe voar. Os estudantes passam-me essa tarefa.
Então eu estou montada no dorso da aranha, mas é muito dificil manobrá-la para levantar voo, porque estamos numa rua estreita, secundária, e coberta. É uma rua cheia de gente, que não queremos atropelar. Então, levo a aranha um pouco pelo chão e um pouco pela parede, para ela criar velocidade e poder levantar voo, no fim da pequena rua.
É uma manobra arriscada. No fim da rua há um prédio em frente. Temos apenas uma nesga de céu aberto para levantar voo. Não sei como, mas consigo fazer com que a aranha levante voo. 

Depois vejo o Sérgio, que é o vagabundo mais famoso da nossa zona. [Ele é muito alto, tem cabelo louro, e nos últimos anos criou uma grande barriga. Dorme nos bancos do jardim, vê televisão nas monstras das lojas e não fala com ninguém.] Vejo o Sérgio mas ele não está sozinho, leva uma criança num carrinho de bebé. É uma menina. É filha dele. É linda. Tem três anos, e está bem tratada, limpa e tudo, mas  tem um ar muito sério, quase triste porque ninguém comunica com ela, e ela não comunica com ninguém. O seu pai não fala. Ele empurra o carrinho. É um carrinho apanhado no lixo, todo desengonçado. Eu não me atrevo a perguntar-lhe nada, porque é um vagabundo muito silencioso, mas duas mulheres crivam-no de perguntas. Essas mulheres são estrangeiras. Ele responde por monossílabos, e vai-se embora. Mas não está zangado nem nada, e isso espanta-me.
A criança acena, com as suas pequeninas mãos, como se quisesse ajuda. Eu não sei o que fazer, mas as duas mulheres estrangeiras sabem muito bem: aproximam-se dele, outra vez, tiram a criança do carrinho, e perguntam ao Sérgio como é que ela se chama, e oferecem-se para cuidar dela. A menina, no colo delas, olha para mim e estende-me os braços. Eu tenho quase vontade chorar, de tanto que desejo cuidar dela. Estou espantada por ele responder às estrangeiras e não parecer muito incomodado com a interferência delas na sua vida de vagabundo.
Eu estou realmente muito espantada com isso. Depois encontro o pequeno vagabundo que cresceu. Era uma criança abandonada que eu costumava ajudar. Desapareceu durante anos. Esteve no estrangeiro. Agora voltou, está muito bem vestido, e corre para mim de braços abertos:
-- Agora tenho uma vida óptima. Vês como tudo mudou? -- abraça-me com toda a força e eu estou muito comovida, porque cheguei a pensar que ele tinha morrido e tudo, e afinal a vida correu-lhe bem e ele safou-se.
Então penso que para o Sérgio ainda há esperança. E para a filha dele, todos os caminhos estão abertos.

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