domingo, 11 de fevereiro de 2007

"John you faded"

NOITE DE 18 PARA 19 DE JANEIRO DE 1997
Estou algures, talvez no Alentejo, quando se torna conhecida uma decisão do governo: cortar a energia eléctrica a uma aldeia completamente habitada por norte-americanos que se recusam a pagar as suas contas de electricidade. O Presidente Sampaio é amigo do presidente americano, contudo este envia-lhe um telegrama em que lhe diz: «John you faded».
Estou na redacção de um jornal local. Ninguém parece, contudo, dar muita importância aquilo. Eu sinto vontade de rir perante o teor daquele e de outros telegramas que traduzo por «John estás fodido». Não tenho a certeza de que é esta a tradução, e procuro um dicionário. O director do jornal local é um padre, que não percebe muito o meu empenho de fazer uma notícia sobre o assunto, mas eu explico-lhe que pode ser a oportunidade de fazer o seu jornal crescer de importância. De resto, apenas me encontro ali por acaso. Depois convenço-o a mandar-me com um fotógrafo até à tal aldeia de americanos agora sem luz eléctrica nas suas casas.
Mas agora estou com um pequeno grupo de soldados, e eu também pertenço a essa tropa especial. O nosso aquartelamento é mais ou menos no deserto, e portanto tem um ar transitório. Eu escolho a melhor das casas de banho, que mesmo assim não é nada de especial, e tenho que a dividir com outra pessoa. Vou ter com o general peço uma só para mim, “e tem de ser boa”, mas ele explica-me que eu fiquei com a melhor casa de banho das redondezas, basta ir comparar com a dos outros, que até têm que a dividir com mais gente. Então compro alguns objectos básicos de limpeza, nada de muito sofisticado: esfregona, balde e pano de pó, para a manter em ordem. A dos outros é um pouco mais confusa, porque há muito roupa pendurada atrás das portas.
Entretanto vamos a caminho da nossa missão, e subitamente o grupo divide-se em dois, e torna-se antagónico. De um lado os anteriores camaradas, que agora são americanos e disparam contra nós. Somos poucos, estamos separados por montículos, à distância de meia dúzia de metros, e estamos muitíssimo bem armados. Ao meu lado um dos soldados tem um lança-morteiros. Peço-lhe que dispare rapidamente ou corremos o risco de morrer todos. Ele põe uma pistola na minha mão. É tão pesada que a mão até cai. Faço um esforço, uma vez que sou soldado, e ergo-a tentando não tremer a mão para fazer pontaria. Digo ao soldado ao meu lado que vá por trás dos montes desarmar de surpresa os inimigos. Agora à minha frente está só um, que é um perigo. Aparentemente todos os outros se acalmaram, e ninguém ficou ferido. Isso é espantoso,
Mas aquele é perigosíssimo, porque está artilhado de bombas de alto a baixo. Granadas pendem-lhe do peito, coisas ainda mais sofisticadas que granadas amarram-se-lhe à cintura. Exijo que se renda. Ele tem um olhar parado de quem não compreende, ou de quem não tem já nada a perder. Diz “se me tocarem vamos todos pelos ares”. Então ouço a voz da Tita, ao meu lado, dizer que o tem sob a mira e que, ou ele se rende imediatamente, ou leva um tiro na cabeça e morre instantaneamente.
Há um longo momento de silêncio e de suspense. Nós todos pensamos “porque raio não dispara ela de uma vez? é menos um perigo para todos”. Mas ela insiste. E ele acaba por se render, ou seja, larga o fio do cordão que ameaçava puxar e que despoletaria a bomba que nos faria ir a todos pelos ares. Pomo-nos a caminho e somos de novo um grupo coeso, o mesmo corpo de comandos. Há homens e mulheres no grupo, mas não somos mais do que cinco, penso. Digo à Tita (nunca a chego a ver) que ela é um espírito muito elevado, para ter tido um inimigo sob a mira e poupar-lhe a vida. É preciso estar muito acima na escala evolutiva humana, para reagir dessa forma. Ela explica-me que não foi só por isso, embora seja sempre de evitar matar os inimigos. Mas o que a impediu também de o fazer foi uma questão de inteligência, porque se o atingisse, mesmo depois de ele ter largado aquele cordão que estava ligado à bomba, as suas mãos ao escorregarem ao longo do corpo iam despoletar outro engenho, mais perigoso ainda, que estava guardado ao nível das virilhas. Assim sendo só havia uma maneira que era dominá-lo de forma psicológica, a fim de que, e por sua vontade, ele desistisse de nos fazer explodir a todos.
Vamos a andar e eu reparo que, para além dos trajes militares em caqui, etc., estamos todos muito bem calçados, com botas sólidas. Uma das mulheres-soldado acho que está com ténis. Falamos de sapatos, e eu digo que, apesar das minhas, das nossas botas, serem muito boas, agora há outros materiais que ainda são melhores, e que era bom substituir o nosso equipamento. Basicamente os sapatos.
As forças vivas da terra estão num palanque, é uma coisa um pouco desorganizada, porque a terra é pequena, e se calhar também não estavam à espera que aparecêssemos naquela altura. A gente não lhes liga, porque os militares não prestam muita atenção aos civis. E aquilo é um bocado saloio. Nós nem estamos a marchar afinados, mas também não é preciso. Cumprimentam-me e eu respondo fazendo uma continência, sem ligar, e a rir. Pergunto ao soldado ao meu lado se fiz bem e ele diz que sim, que é mesmo assim, mas que se quiser fazer a coisa mais a sério tenho que levantar bem a perna esquerda e marchar, não me lembro dos pormenores.

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