sábado, 10 de fevereiro de 2007

Uma ilha muito próxima de terra


OUTRO ANO: 1997

NOITE DE 10 PARA 11 DE JANEIRO DE 1997
Por uma razão que ignoro sou condenada, juntamente com um rapaz brasileiro. Eu não cometi nenhum crime, ele sim. A pena que lhe dão a ele é de morte. A mim não sabem, mas estão a deliberar de modo que, não sendo a pena máxima, seja pesada. Estou tão indignada pela injustiça que exijo que me condenem à pena capital. É meu direito reivindicá-la. Eu sei que isso cria um grande constragimento nos orgão de cúpula judiciais.

Movimento-me numa cidade, ou num território, ou seja lá o que for, que é uma casa de muitos andares. Em liberdade. Num dos quartos está o tal rapaz brasileiro. O padre Pedro anda por lá.
Então, e de repente, é véspera de minha morte. Tomo consciência disso de uma forma avassaladora. Penso: agora tenho de escolher a melhor forma de morrer.
Visualizo-as a todas: enforcamento. Vejo-me pendurada por uma corda diante de meia dúzia de pessoas sentadas numa sala como se fosse uma sala de aulas. Acho ignominioso que a minha morte seja assim, e exijo, na projecção mental, que cubram o meu imaginado corpo com capuz até aos pés. Mas assim baloiço imaginariamente com falta de ar, mesmo antes de morrer. Desisto do enforcamento.
Passo ao fuzilamento. Vejo-me diante de um pelotão que atira sobre mim. E surpreende-me a dor que sinto. As balas traçam no meu corpo dores ardentes. E é tão estúpido morrer assim.
Visualizo o gaz. Penso: assim é rápido e indolor. Mas quando me visualizo amarrada naquela cadeira, e a ampola larga o veneno, sinto um pânico horrível e penso que não posso, não devo morrer com aquela sensação pavorosa de medo e de claustrofobia.
E percebo tudo: estou demasiado saudável para poder morrer. É anormal deixar-me matar assim. Ando pelos corredores com este pensamento a queimar-me.
Tomo a decisão de fugir. Urgentemente. Os conceitos, as palavras, que importa tudo isso diante do absurdo da minha morte no dia seguinte, por uma falta que não cometi?
Chamo a Tita. Ela sai de uma igreja onde estava a assistir à missa rezada pelo padre Pedro, uma capela de Centro Comercial, e um pouco atrás dela vem a Ninor, velha e curvada, mas indiferente ou inconsciente em relação ao que se passa. Penso: "lá anda ela a fazer de conta que reza pelos filhos."

Chamo a Tita à parte. Peço-lhe que meta dentro da mochila do Nuno, aquela que ele me empresta de vez em quando, os básicos da minha partida. Roupa interior, os meus cremes, uma água-de-colónia, pouco mais. Falamos em sussurros. Dinheiro não preciso, tenho o suficiente. Próximo, o padre Pedro está no quarto do brasileiro, suponho que a prepará-lo para a morte imediata. Mas não há nenhuma tensão, nenhum drama, nenhum desgosto no ar.
Eu vou fugir para muito próximo, que estranho. E não é por terra que vou partir. É por mar. Ou pelo Sul ou por Ocidente. Sei que há uma ilha muito próximo de terra, uma coisa tão próxima que se atravessa a vau. Tem de ser assim para eu continuar a cumprir o meu Sonho na vida de acordada. Vou para outra terra tem outra jurisdição. Ali estou salva.
Imagem: http://www.jeffpritchard.com/index.html

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