domingo, 3 de setembro de 2006

A casa velha, a lebre e a pessoa morta 94

Noite de 29 para 30 de Maio de 1994

Há uma casa a desfazer-se, num jardim antigo, muito antigo.
Penso: “é preciso abandoná-la.”
Mas há coisas, lá dentro, que me podem fazer falta. Já no jardim, volto atrás, acompanhada de um grupo de crianças. Entramos e vamos a uma das salas, buscar uma porção de ferramentas que nos podem vir a ser úteis. Sei lá porquê, mas podem. E podem vir a ser usadas, embora eu não saiba como.
Pegamos em várias ferramentas, e aviso os miúdos que as segurem com cuidado: podem cair e ferir-se naquelas lâminas, naquelas roldanas, naquelas serras e rodas dentadas.
Saímos de casa com. Há um jardim. Caçaram uma lebre. Há um piquenique, um lanche, seja o que for. Tudo muito rústico. Uma senhora corta um pedaço da peça de caça e mete-a dentro de um pão. Oferece-me. Recuso, enojada.
A lebre é cozinhada inteira, com tripas e tudo. Ela insiste. Diz que é assim que a caça deve ser cozinhada. E que toda a gente come e gosta muito. Sou obrigada a dizer-lhe que não consigo comer nada assim. Mesmo que seja hábito os outros fazerem-no. Ela pergunta: “pensas que vais conseguir, quando cresceres?”
E eu digo “não. Nem pensar. Vou cozinhar de outra maneira. Para começar, esvazio a cavidade abdominal dos animais.” Depois só me lembro de olhar para aquilo com repugnância.
Havia uma menina, no sonho. Era importante o papel dela. Mas não me lembro qual.

Mesma noite
Uma escada, uma casa velha. Lá em cima um andar escondido em sombras. Alguém morreu. Uma mulher pede-me que lhe faça companhia para ir até lá cima, para confirmar a morte, ou confortar a pessoa que está a morrer.
Começamos a subir as escadas, mas as pernas pesam-me como chumbo. Cada passo pesa toneladas.
“Se houver mesmo um morto lá em cima”, diz a mulher que vai comigo, arrastando-se também penosamente, “não vamos conseguir subir.” Pergunto porque estou tão cansada. Cada passo é tão difícil. “A última vez que morreu alguém”, responde a mulher, “eu não consegui passar para além deste patamar. Uma força enorme, uma barreira invisível, travou-me os passos. Por isso, como já ultrapassamos esses degraus, acho que lá em cima ainda não morreu ninguém.”

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