segunda-feira, 4 de setembro de 2006

A mulher suicida e a festa de cabo-verdianos



NOITE DE 27 PARA 28 DE JUNHO 1994

Uma faixa de terra onde a guerra se instalou; há uma reminiscência colonial naquela zona. Uma ponte, suponho que meio estragada, de madeira. Atravesso-a. Por baixo, há campos férteis e cultivados. Encontro uma senhora que tem uma pastelaria, e vou com um amigo. Penso que é meu marido. Ela recebe-nos muito bem. Os doces cheiram excelentemente.
Gabo-lhe a energia e a limpeza irrepreensível do local, que é exíguo, e serve, simultaneamente, de pastelaria e de venda ao público. Ela suspira. Reparo que há uma parte do tecto a precisar de reparações:
“Está tudo a precisar de obras. Faço o que posso” – diz ela.
Não consigo comer o doce ali. Tento outro balcão. Ela não nos deixa pagar.
Depois tomamos um elevador para o 6º piso. O elevador está muito cheio, e cabe sempre mais um. Faz um calor incrível. O elevador nunca mais pára. Ultrapassamos o 76º andar! É assustador, mas, ao mesmo tempo, a presença do meu marido ao meu lado, junto de mim, conforta-me e afasta o medo. Os andares sucedem-se com uma frequência alucinante. Pergunto: onde é que isto vai parar? O meu marido abraça-me.

Depois vou apanhar um carro com amigos meus. É uma noite muito, muito escura. Há uma mulher que ameaça matar-se, do alto de uma janela da casa em frente ao lugar onde o carro está estacionado. Grito para tirarem dali o carro, mas é inútil. Ela já se atirou para cima do capô, estilhaçando os vidros do pára-brisas. Depois cai no colo dos dois homens, que se desfazem rapidamente do corpo, abrindo a porta do carro e atirando o corpo para o chão.
Pergunto à minha amiga se tinha a certeza de que a outra estava morta, e ela diz, “sabes, há aquele cheiro adocicado dos mortos”, e eu olho e vejo a mulher mexer-se, no chão, e começar a levantar-se. Depois dizem-me que ela se vai vingar por ter sido tratada daquela maneira.
Então metemo-nos todos no carro, e há que partir!
Começamos a descer uma ribanceira tão escura, tão escura. Grito ao condutor “é mesmo preciso irmos por ali?”, ele responde “lá no fundo é a minha casa”. Vamos passando por algumas ruas iluminadas, e ele diz “aqui uns amigos meus dão hoje uma festa.”
Continuamos a descer e eu digo, “com estes meus saltos altos não me convém ir tão longe.” De modo que ele pára, e deixa-me sair e depois diz que volta para me apanhar. Respondo que vou para a festa do amigo dele, e sinto que tenho tanto medo daquela mulher suicida, porque acho que ela se vai vingar deles, matando-os.
Sigo por aquelas ruas estreitas e escuríssimas, entro numa casa, as portas estão abertas. Saem cãezinhos lá de dentro, e eu corro as salas e os quartos e fico espantada por não estar ali ninguém. Só havia um cachorrinho a guardar aquilo tudo!
Entro numa sala com TV ligada e vejo o corpanzil de um cão. Começo a suar frio, e a subir as escadas rapidamente, porque sei que ele já sentiu o meu cheiro, e não sei se vou ter tempo de chegar à porta. Além disso o cachorrinho também perturba porque me segue a fazer barulho. Finalmente consigo sair.
Depois, na rua, pergunto onde é a festa e vou bater a uma porta. Bato, bato, nada. Empurro a porta e vejo um preto a dançar lá dentro. Lembro-me de me terem dito que era uma festa de cabo-verdianos. Entro, ninguém me liga, e pergunto quem é a dona da casa.
“Sou eu” responde uma negra, muito bonita, e eu digo que sou amiga do... e embatuco, porque não sei ou não me lembro do nome dele.
Ela pergunta-me o que quero tomar, e eu vou até ao bar e peço Coca-Cola. Há uns pratos cheios de doces que a dona da casa estava a desembrulhar com uma amiga, e no balcão está um homem a fazer uma confusão com as pedras de gelo, muda-as de copo, troca tudo. Eu estou a falar com um homem branco, sentamo-nos ao balcão, e então aparece outro que nos vem perguntar se nos pode filmar.

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