sábado, 23 de setembro de 2006

A cozinheira cansada e o país em guerra

NOITE DE 14 PARA 15 DE MAIO DE 1994

Estou numa cidade, num país, que não reconheço, embora me seja de algum modo familiar. Há agitação por todo o lado. É preciso fugir.
Nas ruas, multidões correm mais ou menos ao acaso. Sigo uma dessas correntes. Atrás de mim há um homem que me chama, insistentemente, de volta. Obedeço. É alguém a quem pertenço e que me pertence. Temos uma profunda intimidade e sintonia os dois, e junto dele sinto-me protegida. A terra é uma mistura de pequena cidade africana e vila portuguesa medieval. Tem ruas estreitas que desembocam em largos, casas antigas. À volta o espaço é amplo, desamparado. Africano.
Entramos num edifício grande, passamos pelas caves, aonde funcionam – e estão, estranhamente em funcionamento! – as cozinhas. Uma das cozinheiras insiste em fazer umas frituras que lhe saem muito mal. Os ajudantes de cozinha gozam com ela, que, entre resignada e indiferente, continua a sua tarefa.
O país está mesmo em guerra total. Há milhares e milhares de pessoas em fuga. No entanto, e à revelia de todo esse caos, há situações que persistem. Como aquela cozinha, com todos aqueles trabalhadores. Atravessamos o edifício, e saímos.
Cá fora é o caos. Fugimos até que encontramos um outro homem, conhecido do meu marido. Paramos a conversar, rodeados de pessoas. Cresce a sensação de perigo. Mas eles continuam a conversar, encostados a um carro, como se nada fosse. Entretanto as pessoas que nos rodeavam, quase nos esmagando, arranjaram transportes e de imediato o segundo homem deu-nos indicações para entrarmos no carro dele, onde só consegui entrar – tão mal arrumado estava! – por trás.
Há um grupo de guerrilheiros que vem a correr para a cidade, agora atacada por todos os lados. Não conseguimos fugir à primeira: ficamos encurralados na praça, encostados a um passeio, rodeados de adolescentes fardados, rapazes e raparigas, a tentarem virar-nos o carro. Estamos ao lado de uma estação de Caminhos-de-ferro.
Sinto uma terrível falta de ar, e o meu marido deixa-me respirar por uma frinchinha da porta. Entretanto surge em cena um homem mais velho que apita e dá ordem aos miúdos que corram a apanhar um comboio que acaba de entrar na estação. E eles deixam-nos finalmente em paz, porque correm para apanhar o comboio, e nós corremos para salvar a pele.
Andamos muito. Atravessamos campos africanos (savanas) aonde as casas que nos surgem são europeias, e pequenas povoações totalmente destruídas. Os únicos seres vivos que avistamos fugazmente nas ruínas são crianças.
Chegamos então a uma casa de madeira, intacta.
Recebe-nos uma mulher que julgo ser nossa amiga, porque nos diz que ali, finalmente, estamos em segurança. Ali, explica, a guerra ainda não chegou. Ou se chegou já se foi embora. Depois sou avisada pela mulher que o dinheiro perdeu o valor, porque se tornou demasiadamente valioso e deixou de existir. As pessoas têm que encontrar outro tipo de economia, formas novas ou muito antigas.

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