Vou com o meu irmão por uma estrada que se curva entre montes, que não parecem muito elevados. Estes montes fazem curvas suaves, parecem seios verdes que entram pelo azul-cobalto do céu. A meio de uma encosta parece-me ver uma figura de mulher. Mas então os montes já não estão verdes de ervas rasteiras, estão brancos de areia muito branca. Saio da estrada, e tento subir por aquelas dunas que se desfazem sob os meus pés e mãos. O meu irmão começa a escalada. Eu afasto-me ligeiramente dele e tento também subir, enquanto penso que se déssemos a volta pela estrada se calhar chegávamos ao topo sem qualquer esforço, porque me custa a acreditar que aquele seja o melhor ou o único caminho. Começo a subir, escorrego, e volto a subir. A meio de uma encosta vejo, bem acima, uma figura solitária. É um tuaregue de turbante, que caminha imperturbável.
Reparo agora, como naquele deserto, mesmo em locais improváveis como aquela encosta, se encontram detritos da civilização: para variar, sacos de plástico. Penso, “que pena, virem de tão longe sujar este santuário.”
Escorrego e sinto medo e prazer. Medo, porque já subi muito, e imagino que posso cair com força e magoar-me. Também sinto alguma frustração, porque escorrego precisamente quando estou perto de uma plataforma onde me posso içar e encontrar chão mais firme. Mas cair dá-me prazer. Escorrego por um declive de areia fofa e morna, que se solta sob o peso do meu corpo. Volto a insistir. Quando dou por mim tenho as mãos enclavinhadas no bordo da plataforma e os pés à procura de um ponto de apoio, onde me firmo. Agora subo para um chão mais duro, o terreno por onde vi passar em silêncio e mistério, o meu tuaregue.
Começo a andar e chego a um mosteiro. Entro num átrio do que me parece, ao mesmo tempo, um hotel de luxo e um convento. Há frades que caminham, apressados e sorridentes, atravessando um átrio imenso, e outras pessoas, algumas aparentemente com funções específicas. O espaço é levemente sombrio e fresco, em contraste com a luz incandescente do deserto lá de fora.
Espanta-me um pouco ver mulheres naquele local. São mulheres sensuais, muito bonitas. Estas mulheres têm personalidades fortíssimas. Uma está sentada numa cadeira alta, ocupando um espaço central. Olha-me de frente e o seu olhar quase me intimida. Está vestida de vermelho, a roupa é um pouco provocante, mas extremamente sofisticada. Outra vem a chegar e vai já partir. É mensageira e está mais ao nosso nível. Está vestida de caqui, uma espécie de fato camuflado, e move-se com agilidade e com alegria. Ela fala com os frades. Ela fala com toda a gente. Os frades riem. Não sei porquê, lembram-me budistas. Parecem espelhar naqueles sorrisos uma felicidade quase infantil.
Percebo que pertenço ali. Eu estou em casa, de uma forma que não sei explicar. Então vem-me uma febre de conhecer tudo, e avanço quase correndo, para um quarto, e resolvo espreitar os armários, porque me lembro que muitas vezes não ligamos, nos sonhos, a esses pormenores, e perdemos oportunidades fantásticas. Abro as portas de um guarda-fatos, e elas revelam-me outras portas. São todas lindíssimas e todas diferentes umas das outras. Vou abrindo, sucessivamente, portas que dão para portas, numa urgência onde já entra alguma raiva e frustração. Penso que se abrir as gavetas do fundo do armário, posso meter as mãos por baixo e tentar abrir a última porta de todas as portas, e perceber o que guarda aquele armário, que agora sinto e sei que está vazio. Então vejo um dos frades ao meu lado, e ele está a sorrir com um ar muito pacífico e diz: “não é por aí que vais descobrir nada de interessante.” Não há qualquer espécie de censura na sua observação. Então volto as costas àquele quarto, avanço pelo átrio fora, meto-me por um corredor e depois estou a subir umas escadas em caracol e então vejo uma espécie de torre envidraçada onde estão duas crianças, um rapaz e uma rapariga. Têm nove anos. Em frente da torre há o mar azul e imenso. E sol, e vento.
As crianças chamam-me. Vou ter com elas. Há uma varanda em redor da torre, e eu não sei como se entra, embora tudo pareça tão simples. É a rapariga que sai e me pega pela mão para me ensinar a maneira de entrar na torre. Lá dentro está-se melhor, porque apesar de ser muito bonita a vista cá de fora, o vento é ligeiramente agreste. Além disso, cá de dentro, vê-se singularmente bem toda a paisagem em volta.
As crianças perguntam-me se já conheço a grande cozinha. Digo que conheço a cozinha, sim, um dos frades mostrou-me onde se fazem os alimentos, para eu depois ir buscar, quando tivesse fome. Aliás lembro-me que o frade me falou em várias cozinhas. Mas nenhuma delas era enorme. As crianças trocam um olhar:
– Então não viste nada ainda. A grande cozinha é imensa e dali vai dar a todas as outras pequenas cozinhas. Ocupa todo um alicerce deste mosteiro. Não viste senão uma amostrazinha de nada. A entrada nem sequer é por aí, por onde te disse o frade – respondem elas.
Pergunto-lhe se sabem lá ir. Respondem-me que vão lá todas as vezes que querem. Conhecem o mosteiro, todo. E sabem todos os seus segredos. Prometem levar-me com eles. E contar-me tudo. Tudo.
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