segunda-feira, 19 de outubro de 2009

A água é muito quente mas os camarões estão vivos

NOITE DE 20 PARA 21 DE FEVEREIRO DE 1998 O piso é muito irregular. Começa a ser perigoso. O condutor é um amigo mas guia muito depressa. Os meus filhos vão connosco. Estão sentados no banco de trás. O meu amigo ri-se com os obstáculos. Eu também, mas estou consciente dos perigos. A estrada é perigosa sobretudo para o carro. Eu dou-lhe indicações, como se soubesse, exactamente, todas as curvas, todas as lombas, todos os buracos e precipícios com que nos vamos deparando. A certa altura digo:
– O pior é agora.
E peço-lhe para abrandar. Ele demora a reagir mas abranda  mesmo a tempo e pára diante de uma cratera que corta a estrada. Se não tivesse parado enfiava o carro lá dentro. Os meus filhos perguntam:
«O que é que podia ter acontecido? Morríamos?» (nessas circunstâncias). Respondo-lhes que não. Não era assim tão perigoso para nós. Mas o carro ia ficar muito estragado.


Saio e começo a andar a pé. Sozinha. E a estrada é uma estrada marinha, com covas e crateras de praia, o tipo de erosão causado pelas marés. À minha direita há um poço largo e fundo. Tem muitos camarões lá dentro. Puxo-os com uma rede para a superfície. Estão cozinhados e prontos para serem comidos. Como alguns e ofereço outros a pessoas que agora estão comigo. São muito bons. Alguém me pergunta: «Sabes o segredo de cozinhar bem camarões?»
Digo:
«A água deve estar tão salgada como a água do mar. E o tempo de cozedura são oito minutos».
A pessoa que está comigo diz:
«Não. São dez», mas depois emenda: «É verdade, são oito ou sete minutos».
Em frente, sempre à minha direita, há outro lago. Pesco mais camarões e como-os. Mas estes são transparentes porque ainda não foram cozidos. Não consigo comê-los assim: estão vivos. Têm olhos que brilham. A água é muito quente. Penso: é mesmo assim que eles vivem?

Continuo a andar. Chego ao fim da estrada. E no fim da estrada há uma grande cozinha onde trabalham várias pessoas. É uma cozinha que dá comida a muita gente, mas agora, como já passou a hora do almoço, está a acabar de ser arrumada. A cozinheira fica muito preocupada comigo, e quer-me arranjar coisas para eu comer. Acho graça quando ela diz:
«Agora já não há nada», porque, em cima de uma das bancas há uma travessa com os restos do almoço. É uma travessa muito grande com muitas fatias de carne. É para os ajudantes comerem. Ela quer arranjar-me um prato, mas eu não tenho fome.

Dentro da cozinha, num dos desvãos, há um quarto escuro. Na parede ao lado desse quarto escuro alguém colou uma espécie de jornal de parede que traz uma notícia que me inquieta, porque é um jornal de grande circulação. E a notícia diz que a Polícia descobriu, ao fim de 27 anos, quem tinha sido o verdadeiro autor de uns crimes. Nessa época algumas pessoas apareceram enforcadas. Mas afinal tinham sido mortas a tiro. E a arma acabara por aparecer, aos pedaços. O carregador fora encontrado em Matosinhos, o coldre já não sei onde, mas no estrangeiro, e a policia acabara por reunir todas as peças e determinara que fora dali que tinham partido os tiros. A arma, desmontada e já sem poder de acção, estava colocada na parede, ao lado do jornal. Os pedaços da arma eram negros e tinham um brilho fosforescente e assustador. Eu tenho medo que aquela arma se relacione com outra história recente. Uma história de dinheiro. Não me diz respeito, mas envolve pessoas que todos nós conhecemos. E essas pessoas são perigosas.
Depois estou em Cuba com os meus filhos. Encontro muitos jornalistas portugueses, estão ali em trabalho.

Just for the record: na minha vida acordada, o tempo de cozedura dos camarões é mais ou menos 3 minutos.

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