quinta-feira, 12 de outubro de 2006

Um avião na selva e uma pensão em Argel

NOITE DE 12 PARA 13 DE AGOSTO dfe 1994

O avião tem poucas pessoas. Acho que eram eu, a Paulinha da produtora e o Peter ou o Jó. É um avião pequeno, mas confortável. Aterramos numa estrada na selva. Eles saem e deixam-me sozinha lá dentro. Dizem que é muito perigoso ir com eles, porque há muitos guerrilheiros a patrulhar o local, e além disso há muitas minas. Agacho-me perto de um dos bancos mas estou com medo de estar sozinha. Penso: “e se eles não voltarem?” Já lhes tinha perguntado antes quem ia pilotar o avião de regresso e tinha-me oferecido para o fazer, se me explicassem como.
Então saio. Vejo passar um grupo de negros, armados, cantando canções guerreiras. Resolvo ir até à cidade mais próxima. Sinto que não posso continuar dentro do avião, sozinha. Na cidade dou por mim num parque grande. Faz-me lembrar o jardim em Portimão, frente ao mar. Caminho um pouco ao acaso e percebo que estou em Argel.
Argel é uma cidade perigosa, sobretudo para as mulheres, e mais ainda se são brancas. Eu lembro-me disso tudo enquanto vou andando. Depois percebo que entrei num muceque. Aí apanho um susto. Ao fim da rua estreita e lamacenta, rodeada de casas de madeira, baixas e muito pobres, vejo um leopardo e um chacal. O leopardo está a rosnar desconsoladamente. O chacal está mais a atrás. Não o vejo com nitidez.
Uma mulher, que aparece ao meu lado, explica-me que o leopardo em liberdade, ali, na cidade, pertencia certeza a alguém que se foi embora, por causa da guerra. Portanto, aquela fera desolada é um animal de estimação deixado para traz.
Resolvo retroceder. Domesticado ou não, é um leopardo com fome. A mulher, estranhamente, retrocede comigo. Quando volto a cabeça, para olhar os dois animais, verifico que o leopardo tem metade da boca descarnada, com os dentes à mostra, como se os beiços tivessem sido consumidos pela fome. É horrível. Ambos os animais chafurdam em latas de lixo viradas.
Continuo a andar. Agora está comigo uma rapariga com quem tento falar em várias línguas. Entramos numa modesta pensão, numa zona melhor do que aquela que atravessamos, mas ainda assim na vizinhança do muceque. Lá dentro está a mãe da rapariga e ambas trocam entre si umas frases em português. Sinto um grande alívio. Explico quem sou, e o que estou a fazer. A mulher escreve o número de telefone da pensão numa folha de papel, entrega-mo, e diz: “se não encontrares os teus companheiros de viagem podes contar comigo ficar aqui”. A mulher diz que está há imenso tempo a viver na Argélia, que já se habituou, mas mesmo assim é um local perigoso. Depois estende-me uma nota de 50 dinares e diz “Isto é para o que for preciso.” Eu não quero aceitar, porque, e naquele momento, não tenho maneira de lhe pagar. Mas ela insiste, diz que eu posso vir a precisar daquele dinheiro. Diz também que não me preocupe com o pagamento. “Isso vê-se depois.”
Sinto-me muito contente. Saí do avião, escapei aos guerrilheiros, orientei-me na cidade perigosa e desconhecida, escapei às feras, consegui encontrar e fazer amigos. E tenho um número de telefone de alguém a que posso recorrer, e dinheiro para uma emergência.
Então, e sempre a andar, encontro de novo a minha equipa, no jardim junto do mar, e conto-lhes a minha aventura. Estou tão contente. Penso que depois partimos.
Lembro-me de ver barcos de pesca e veleiros no cais. Joshua?

MESMA NOITE
Depois estou a passear com amigos, junto da linha de Cascais. Ao atravessar para o lado de lá da linha de comboio vejo dois gatos. Um, esperto, salta e consegue entrar na casa para onde vamos. O outro, mais pequeno, mia e torce-se amedrontado. Está do lado de fora do muro. Debruço-me e consigo apanhá-lo. Pego-lhe ao colo. Está muito assustado e não consigo acalmá-lo. Solto-o. Ele corre para dentro de um prédio. Há umas escadas fragilíssimas. Ao cimo das escadas o chão é de ripas de madeira, mal seguras e muito separadas. É assustador. O gato cai, nem parece um gato. Volto a agarrá-lo, e seguro-o contra mim, com força. Tento acalmá-lo. Protegê-lo. É como se agarrasse um filho. Depois sinto também que é como se segurasse um amante.
imagem: http://geeks.beyondunreal.com/images/ut2004-mappacks/1on1pack/DM-1on1-Argel_01.jpg

Sem comentários:

Enviar um comentário