Noite de 10 para 11 de Outubro 2001
I Trabalho de parto
Vou dar à luz. Sou uma Rainha-mãe de cabelos cinzentos, em trabalho de parto e estou no século XIV. Chamo a minha aia. Tenho dores insuportáveis, mas ela, no processo de me ajudar, parece que ainda as agrava mais. O palácio está completamente silencioso. A minha aia diz:
– Temos de fugir. Vêm aí para te matar. A ti e ao teu filho.
– Uma mulher não pode fugir enquanto está a dar à luz! – digo eu.
– Pode, se quiser salvar a vida dela e do filho – responde a aia.
Como é que tudo começou? Eu estou a escolher livros num alfarrabista. Já tenho uma série deles quando pego em três volumes, antigos, de autores diferentes, bem encadernados, e saio com eles sem os pagar. Tenho consciência do meu roubo, e sinto-me tentada a voltar atrás e colocá-los de novo na mesa de ponde os tirei. Eles estavam expostos na rua. Contudo, decido sentar-me e apreciar bem o que levo, antes de tomar alguma iniciativa. E é isso que faço. Folheio os livros, um por um. Estão muito estragados por dentro. Por muito que pudesse gostar dos livros, e nem sequer é esse o caso, neste estado não me interessam de todo.
E agora estamos junto do solar de uma amiga minha que está a catalogar o recheio da casa para não ter problemas com os irmãos. Ela está ligeiramente irritada. Diz:
– Vocês não imaginam as cenas que eles são capazes de fazer por causa de umas colheres de prata!
Decido devolver os livros. Mas agora o alfarrabista é dentro de um edifício e não ao ar livre. Ele faz questão de me mostrar um livro lindíssimo que acha que eu devo gostar. É uma obra medieval. E tem ilustrações a três dimensões. São figuras recortadas nas páginas do lado esquerdo, e que se evidenciam em janela. Virando um numero de páginas suficientes, ao mesmo tempo, a janela deixa ver cenas quase em animação.
II Em perigo de vida
Vejo assim uma janela ogival, por detrás da qual se entrelaçam lanças e se enfrentam lanceiros. Com o virar das páginas as figurinhas ganham mesmo uma ilusão de movimento filiforme. E agora, a dar à luz, é exactamente nesse cenário que me encontro. Em perigo de vida, segundo a minha dinâmica aia.
Ela guia-nos através de corredores desertos e escadas. As escadas e as paredes são de madeira maciça. Finalmente chegamos ao último andar. Ali ficam os aposentos das criadas. Ela faz-me despir as minhas roupas e veste-me as delas. Agora também eu pareço uma criada, com uma touca branca a esconder-me o cabelo cinzento, e com roupas pesadas e escuras a esconder-me a barriga. A minha saia é preta, franzida na cintura e por cima tenho uma blusa do mesmo tecido:
– Vão descobrir que estou grávida! – digo eu.
A aia tranquiliza-me:
– Vão é achar que Vossa Majestade é gorda e pesada como qualquer criada a partir de certa idade. E agora, desculpe, mas vou ter de a tratar de igual para igual. Temos de parecer íntimas.
Os passos dos homens aproximam-se:
– Estão quase aqui – diz a aia.
E nesse momento eles entram. Estão armados, de lanças e espadas. Se soubessem quem eu era, degolar-me-iam mesmo ali. Eu própria não me reconheço fisicamente, como Rainha-mãe, embora saiba que sou eu própria. Exteriormente nem o tom de pele, nem o corpo, nem o cabelo, nem as feições são as minhas, tal como estou habituada a reconhecer-me. Contudo, sei que sou a mesma, indubitavelmente.
Os homens vasculham o quarto e os anexos onde estamos e onde vive a minha aia. Mal olham para mim. Eu chego à janela e olho para o parque. É muito bonito, e tem uma estrada larga, de saibro, até ao portão. É um parque muito grande, dali só se vê a parte que dá para a entrada. Os homens perguntam-me se não sei de nada:
– Vi duas pessoas a correr para a saída do parque – respondi, sempre a olhar pela janela – uma delas caminhava com dificuldade.
Os homens lançam exclamações em voz surda:
– Claro! É a única forma de escapar. É preciso coragem e atrevimento, porque é muito arriscado, assim em plena luz do dia fugir pela entrada principal, mas ela tem as duas coisas. Temos de correr para a apanhar.
Perguntam-me há quanto tempo é que eu vi isso, e respondo que foi mais ou menos há uma hora e meia.
Então eles saem e nós respiramos de alívio. Contudo, em nenhum momento senti medo, ou qualquer coisa parecida, a não ser talvez nos primeiros momentos em que a aia me avisou, e na altura em que os passos dos homens se tornaram audíveis antes de entrarem nos aposentos. Depois, tudo se passou como se fosse, de certa forma um jogo, cujas etapas se foram cumprindo com mais ou menos emoção.
III a negra idosa muda as fraldas do bebé
Agora, na sala do lado há uma negra, idosa, a mudar a fralda a um bebé que é neto dela. Mas ela não tem fralda nenhuma. Digo:
– Acho que tenho ainda, cá em casa, algumas. Vou procurar e depois dou-lhas.
Não me lembro do resto.
Diário dos meus sonhos. My colourful dream diary. Le journal de ma vie ensommeillée.
segunda-feira, 13 de setembro de 2010
domingo, 15 de agosto de 2010
O bosque antiquíssimo e o Forno do Pão
Noite de Segunda-feira, 8 para 9 de Outubro 2001
I O Reencontro de outras vidas
Estou a acabar de almoçar. [...] Depois, com a boca cheia e o caderno de apontamentos na mão, venho para junto do Alexandre e começo a escrever as informações, extensas, que ele me dá sobre os locais ideais para ir comer. Ele só me dá indicações dessas. A seguir, começamos a andar. Avançamos por um bosque, onde há muitas árvores de fruta. São nespereiras, com nêsperas pequeninas, que ainda não se podem comer. Eu fico sempre espantada como ainda se consegue encontrar no Porto, ao virar de uma esquina, no fim de uma rua, o campo. Aquele bosque é um terreno de passagem, de ninguém. Assim está, sabe-se lá, também, há que séculos. Numa cidade que já entrou no século XXI.
Depois estamos na rua onde fica o forno do pão. É uma rua pequena e medieval. Há muita gente a entrar e a sair daquele edifício, onde se fabrica e vende o famoso pão. A loja fica no 1º andar. Subimos. Ali sai-me ao caminho a dona do forno do pão. É uma mulher idosa, de traços firmes. É uma mulher do povo com um olhar franco e firme. Ela abraça-se a mim e põe-se a chorar. Eu não a conheço:
– És mesmo tu! Oh, que alegria. E estás tão bonita como sempre! – Exclama ela, apertando-me nos seus braços e afastando-me um pouco para me olhar uma e outra vez.
Eu sinto-me comovida com estas demonstrações. Mas o facto é que continuo a não reconhecer a mulher. Ela diz-me:
– Já vivemos tantas vidas!
Ela recorda-se de mim de outras vidas. E recorda-se particularmente de mim, diz, de uma última reincarnação em que teríamos estado mais próximas. Tenho vontade de chorar, mas continuo a dizer-lhe, com toda a franqueza, que não me recordo de nada. Ela diz que eu também tinha nascido mulher, nessa última vida a que se está a referir.
II O Homem africano que cometeu um crime
Depois há um homem, africano, que é preciso esconder. Ele cometeu um crime. Por uma razão qualquer as pessoas do Forno do Pão, entre as quais eu já me incluo, estão prontas a escondê-lo. Havia dois criminosos inicialmente. Um deles, contudo, julgou poder escapar melhor roubando a identidade do outro. Esse respondeu-lhe:
– Para todos os efeitos, mesmo que troques de identidade comigo e que me mates, ah!ah! ah!, eu também estou fichado. Ficas, à mesma, com a identidade de um criminoso procurado.
O outro, no entanto, não quis saber destes argumentos lógicos e matou-o, apoderando-se da sua identidade referenciada em termos criminais. E depois, para despistar a polícia, tinha ficado escondido na cave do Forno do Pão. Como o Forno do Pão era próximo da fronteira, resolvemos levá-lo para lá. Ali íamos dar-lhe dinheiro e ajudá-lo a ganhar o mundo.
II O Criminoso e o Homem do Forno do Pão
Há polícia sempre perto, a vigiar a casa. Metemo-lo dentro de uma saca de batatas e levamo-lo para o jipe, onde colocamos mais sacas de batatas. Um dos polícias espreita para dentro do jipe, mas não desconfia de nada. Pergunta ser está tudo bem e pede-nos para termos cuidado. Ninguém desconfia de nós.
Perto da fronteira soltamos o criminoso e damos-lhe dinheiro. Ele está bem vestido, mas tem os olhos cheios de ódio. Passamos por um café com uma esplanada perto do bosque onde ele tem de se embrenhar para passar a linha da fronteira. Ele passa junto de uma mesa onde estão um homem e uma mulher, jovens, e mete-se com a mulher em termos inqualificáveis. O homem olha para ele estupefacto. Nós agarramos no criminoso por um braço e arrastamo-lo dali para fora. Estamos furiosos, o homem idoso e eu:
– Queres atrair as atenções? Queres ser apanhado antes de conseguir fugir? E queres que nós sejamos incriminados por te termos ajudado?
Começamos a andar pelo bosque. O homem do Forno do Pão está realmente zangado. Eu pergunto ao criminoso se não aprendeu nada com esses três meses fechados na cave:
– Aprendi muito. Coisas ainda piores e muito mais nojentas.
Eu digo ao homem do Forno do Pão:
– Não podemos fazer nada. Ele é genuinamente mau. Não adiantou nada tudo isto.
O homem do Forno do Pão, que é mais velho e muito astuto, diz:
– Já calculava. Vim preparado para isso.
Então, chama o criminoso que vem a bambolear-se, com a sua roupa nova, e pede-lhe que se aproxime de nós. Eu sei que o criminoso, mal tenha uma oportunidade, vai tentar matar-nos. O homem do Forno do Pão, contudo, mal ele chega suficientemente perto, puxa de uma arma e dispara sobre ele, vários tiros.
Depois diz:
– É a única coisa que se pode fazer. Agora, deitamo-lo ao Rio e o Rio que o leve.
I O Reencontro de outras vidas
Estou a acabar de almoçar. [...] Depois, com a boca cheia e o caderno de apontamentos na mão, venho para junto do Alexandre e começo a escrever as informações, extensas, que ele me dá sobre os locais ideais para ir comer. Ele só me dá indicações dessas. A seguir, começamos a andar. Avançamos por um bosque, onde há muitas árvores de fruta. São nespereiras, com nêsperas pequeninas, que ainda não se podem comer. Eu fico sempre espantada como ainda se consegue encontrar no Porto, ao virar de uma esquina, no fim de uma rua, o campo. Aquele bosque é um terreno de passagem, de ninguém. Assim está, sabe-se lá, também, há que séculos. Numa cidade que já entrou no século XXI.
Depois estamos na rua onde fica o forno do pão. É uma rua pequena e medieval. Há muita gente a entrar e a sair daquele edifício, onde se fabrica e vende o famoso pão. A loja fica no 1º andar. Subimos. Ali sai-me ao caminho a dona do forno do pão. É uma mulher idosa, de traços firmes. É uma mulher do povo com um olhar franco e firme. Ela abraça-se a mim e põe-se a chorar. Eu não a conheço:
– És mesmo tu! Oh, que alegria. E estás tão bonita como sempre! – Exclama ela, apertando-me nos seus braços e afastando-me um pouco para me olhar uma e outra vez.
Eu sinto-me comovida com estas demonstrações. Mas o facto é que continuo a não reconhecer a mulher. Ela diz-me:
– Já vivemos tantas vidas!
Ela recorda-se de mim de outras vidas. E recorda-se particularmente de mim, diz, de uma última reincarnação em que teríamos estado mais próximas. Tenho vontade de chorar, mas continuo a dizer-lhe, com toda a franqueza, que não me recordo de nada. Ela diz que eu também tinha nascido mulher, nessa última vida a que se está a referir.
II O Homem africano que cometeu um crime
Depois há um homem, africano, que é preciso esconder. Ele cometeu um crime. Por uma razão qualquer as pessoas do Forno do Pão, entre as quais eu já me incluo, estão prontas a escondê-lo. Havia dois criminosos inicialmente. Um deles, contudo, julgou poder escapar melhor roubando a identidade do outro. Esse respondeu-lhe:
– Para todos os efeitos, mesmo que troques de identidade comigo e que me mates, ah!ah! ah!, eu também estou fichado. Ficas, à mesma, com a identidade de um criminoso procurado.
O outro, no entanto, não quis saber destes argumentos lógicos e matou-o, apoderando-se da sua identidade referenciada em termos criminais. E depois, para despistar a polícia, tinha ficado escondido na cave do Forno do Pão. Como o Forno do Pão era próximo da fronteira, resolvemos levá-lo para lá. Ali íamos dar-lhe dinheiro e ajudá-lo a ganhar o mundo.
II O Criminoso e o Homem do Forno do Pão
Há polícia sempre perto, a vigiar a casa. Metemo-lo dentro de uma saca de batatas e levamo-lo para o jipe, onde colocamos mais sacas de batatas. Um dos polícias espreita para dentro do jipe, mas não desconfia de nada. Pergunta ser está tudo bem e pede-nos para termos cuidado. Ninguém desconfia de nós.
Perto da fronteira soltamos o criminoso e damos-lhe dinheiro. Ele está bem vestido, mas tem os olhos cheios de ódio. Passamos por um café com uma esplanada perto do bosque onde ele tem de se embrenhar para passar a linha da fronteira. Ele passa junto de uma mesa onde estão um homem e uma mulher, jovens, e mete-se com a mulher em termos inqualificáveis. O homem olha para ele estupefacto. Nós agarramos no criminoso por um braço e arrastamo-lo dali para fora. Estamos furiosos, o homem idoso e eu:
– Queres atrair as atenções? Queres ser apanhado antes de conseguir fugir? E queres que nós sejamos incriminados por te termos ajudado?
Começamos a andar pelo bosque. O homem do Forno do Pão está realmente zangado. Eu pergunto ao criminoso se não aprendeu nada com esses três meses fechados na cave:
– Aprendi muito. Coisas ainda piores e muito mais nojentas.
Eu digo ao homem do Forno do Pão:
– Não podemos fazer nada. Ele é genuinamente mau. Não adiantou nada tudo isto.
O homem do Forno do Pão, que é mais velho e muito astuto, diz:
– Já calculava. Vim preparado para isso.
Então, chama o criminoso que vem a bambolear-se, com a sua roupa nova, e pede-lhe que se aproxime de nós. Eu sei que o criminoso, mal tenha uma oportunidade, vai tentar matar-nos. O homem do Forno do Pão, contudo, mal ele chega suficientemente perto, puxa de uma arma e dispara sobre ele, vários tiros.
Depois diz:
– É a única coisa que se pode fazer. Agora, deitamo-lo ao Rio e o Rio que o leve.
segunda-feira, 5 de julho de 2010
Um jogo oceânico e um crime no colégio
Noite 6 para 7 de Outubro 2001
O meu computador não funciona bem. Quero abrir o Outlook mas uma sucessão de programas sobrepõem-se-lhes. O Drew fica muito irritado, acha que eu não estou a proceder correctamente. Acabo por lhe mostrar que a culpa não é minha, e ele, então, começa a irritar-se com os irmãos. Eles instalaram um jogo de estratégia no meu computador. À minha frente, por detrás do ecrã, está uma folha de cartão onde, escrito à mão, estão as explicaçoes do jogo de estratégia que foi instalado. É um jogo marítimo. É um jogo oceânico. Continua a processar-se mesmo depois deles deixarem de jogar. E, de uma maneira misteriosa mesmo para o próprio jogo, o mar vai crescendo e tomando consciência de si, de tal modo que este programa acaba por se sobrepor a todos os demais.
Depois, estou no colégio. Somos três ou quatro, temos entre dez e quatorze anos. E precisamos de enfrentar um gang de traficantes de droga. Em grupo, descemos pelo jardim onde eles costumam encontrar-se. É suposto dar-lhes a entender que estamos dispostas a negociar com eles. Eles querem atacar-nos para nos roubar o dinheiro que julgam que temos. Passamos por eles, fazendo-nos distraídas, mas aparentando um ar de segurança. O passeio faz um U. Na base do U, no fim da descida, chegamos à conclusão de que ninguém vem ter connosco e que nos estão a preparar uma armadilha. Subimos e chegamos ao guichet da entrada do Jardim. Uma de nós puxa de uma arma. Penso que sou eu, e mato os dois agressores principais. Um é negro outro é branco. O grupo é muito maior, mas destruídos estes cabecilhas, desfaz-se num instante. Agarro na arma e coloco-a nas mãos da mais nova:
– Não tens ainda 14 anos, és inimputável. Vais dizer que foste tu. Nem é aberto o processo. E acabamos com estes malfeitores.
Ela fica com a arma na mão.
Depois, outra vez no colégio. Estamos a despedir-nos e é muito triste. Alguém se está a ir embora. Não sei se sou eu, se todas nós. Por alguma razão que não recordo, há muita saudade nestas despedidas.
O meu computador não funciona bem. Quero abrir o Outlook mas uma sucessão de programas sobrepõem-se-lhes. O Drew fica muito irritado, acha que eu não estou a proceder correctamente. Acabo por lhe mostrar que a culpa não é minha, e ele, então, começa a irritar-se com os irmãos. Eles instalaram um jogo de estratégia no meu computador. À minha frente, por detrás do ecrã, está uma folha de cartão onde, escrito à mão, estão as explicaçoes do jogo de estratégia que foi instalado. É um jogo marítimo. É um jogo oceânico. Continua a processar-se mesmo depois deles deixarem de jogar. E, de uma maneira misteriosa mesmo para o próprio jogo, o mar vai crescendo e tomando consciência de si, de tal modo que este programa acaba por se sobrepor a todos os demais.
Eu não consigo aceder ao Outlook e percebo que tenho mensagens. Isso deixa-me muito enervada. Começo a andar de trás para a frente, a chamar nomes ao Bernie e ao Lu. Evitando algumas palavras que me poderiam implicar directamente, como “filho de...”. O Drew, entretanto, está a resolver o problema, quando um homem desconhecido passa por nós. Fico um tpouco embaraçada por ele me ter visto tão irritada. Tomo consciência que tenho uma saia cuja ponta é mais comprida à frente. A saia é muito, muito vanguardista. Só agora entendo como devo amarrar a ponta que arrasta no chão com a outra ponta que cai atrás. É uma saia estranha.
– Não tens ainda 14 anos, és inimputável. Vais dizer que foste tu. Nem é aberto o processo. E acabamos com estes malfeitores.
Ela fica com a arma na mão.
Depois, outra vez no colégio. Estamos a despedir-nos e é muito triste. Alguém se está a ir embora. Não sei se sou eu, se todas nós. Por alguma razão que não recordo, há muita saudade nestas despedidas.
domingo, 4 de julho de 2010
O centro comercial, o barco de recreio e a cidade antiga
Noite de 16 para 17 de Setembro 2001
Estou a descer uma rua e entro num Centro Comercial. É domingo, é noite e está tudo muito deserto. Dentro do edifício, há ruas interiores e o espaço abre-se para um vasto e esmagador conjunto de edifícios muito modernos, em vidro em tons azulados. Ali não há vida. Imagino que em horário de funcionamento, pode haver muita gente, mas são só escritórios. Nem se vêm as montras das lojas. Pior: o tecto não abre para o céu, mas sim para um simulacro, em fibra de vidro, o que dá uma atmosfera asfixiante àquele lugar. Procuro a saída, e encontro-a guardada por portas de vidro circulares e porteiros. É muito mais fácil sair do que entrar. Há muita gente cá fora, mas só entra uma de cada vez. Pergunto a mim própria que tipo de mentalidade preside a uma estrutura daquelas que limita as suas naturais fontes de crescimento. Ou seja, quando se impedem os consumidores de aceder ao consumo, o que se pode esperar daquele negócio? Mas também me espanta que haja pessoas que se sujeitem a entrar assim, de mais a mais em lugares tão pouco atraentes.
Depois estou num barco de recreio. Num grande paquete. Alguém nos mostra, a mim e ao Otto os folhetos da viagem. Penso: afinal sempre escolhemos fazer um cruzeiro. Mas os folhetos que eu tenho em meu poder não dão qualquer informação sobre o barco, os espectáculos, as paragens. Só têm informações sobre os equipamentos de ginástica e os seus custos, por hora, por dia ou por passe. Depois estamos a ver filmes. Podemos seleccionar uma quantidade deles, em DVD.
Depois estamos numa cidade antiga, onde eu às vezes ia, e o Otto leva-me a um restaurante que é numa casa particular. Podemos escolher a sala onde comer e tudo. Ele diz que conhece vários assim. Cada um com várias salas. As salas são decoradas como nas casas humildes. Não sei porquê, mas aquilo está associado a comida caseira e boa, porque sai fora dos circuitos comerciais da massificação. Além disso, parece-me que o Otto, ou a pessoa com quem estou agora, é amigo do dono, que é um senhor bem disposto e de meia-idade. Acho que há mais amigos que se vêm reunir a nós.
Depois estou a escrever ao meu tio Roger, numa camisola de algodão. É difícil escrever assim, mas o efeito é engraçado. Algumas palavras são substituídas por símbolos. Ele tinha feito uma comparação entre mim e ele, que me era favorável, admito, em termos da opinião que as pessoas, nesta cidade antiga, podem ter a meu respeito, mas sinto-me na obrigação de o corrigir. Não porque eu não tenha boa opinião a meu respeito, mas porque os dados das nossas vidas são muito diferentes. Para quem vê de fora, a opinião pode ser muito diferente, e eu nem sequer acho estranho que o seja. Tanto mais que estamos numa cidade antiga, onde valores antigos, ligados às aparências, ainda vigoram.
Mas sim, concordo com ele: somos parecidos no motor da nossa coerência íntima. Escrevo-lhe mais ou menos isto, na camisola encarnada que lhe vou mandar. E digo as mesmas coisas ao telefone, porque, afinal de contas, nós os dois estamos a conversar.
Estou a descer uma rua e entro num Centro Comercial. É domingo, é noite e está tudo muito deserto. Dentro do edifício, há ruas interiores e o espaço abre-se para um vasto e esmagador conjunto de edifícios muito modernos, em vidro em tons azulados. Ali não há vida. Imagino que em horário de funcionamento, pode haver muita gente, mas são só escritórios. Nem se vêm as montras das lojas. Pior: o tecto não abre para o céu, mas sim para um simulacro, em fibra de vidro, o que dá uma atmosfera asfixiante àquele lugar. Procuro a saída, e encontro-a guardada por portas de vidro circulares e porteiros. É muito mais fácil sair do que entrar. Há muita gente cá fora, mas só entra uma de cada vez. Pergunto a mim própria que tipo de mentalidade preside a uma estrutura daquelas que limita as suas naturais fontes de crescimento. Ou seja, quando se impedem os consumidores de aceder ao consumo, o que se pode esperar daquele negócio? Mas também me espanta que haja pessoas que se sujeitem a entrar assim, de mais a mais em lugares tão pouco atraentes.
Depois estou num barco de recreio. Num grande paquete. Alguém nos mostra, a mim e ao Otto os folhetos da viagem. Penso: afinal sempre escolhemos fazer um cruzeiro. Mas os folhetos que eu tenho em meu poder não dão qualquer informação sobre o barco, os espectáculos, as paragens. Só têm informações sobre os equipamentos de ginástica e os seus custos, por hora, por dia ou por passe. Depois estamos a ver filmes. Podemos seleccionar uma quantidade deles, em DVD.
Depois estamos numa cidade antiga, onde eu às vezes ia, e o Otto leva-me a um restaurante que é numa casa particular. Podemos escolher a sala onde comer e tudo. Ele diz que conhece vários assim. Cada um com várias salas. As salas são decoradas como nas casas humildes. Não sei porquê, mas aquilo está associado a comida caseira e boa, porque sai fora dos circuitos comerciais da massificação. Além disso, parece-me que o Otto, ou a pessoa com quem estou agora, é amigo do dono, que é um senhor bem disposto e de meia-idade. Acho que há mais amigos que se vêm reunir a nós.
Depois estou a escrever ao meu tio Roger, numa camisola de algodão. É difícil escrever assim, mas o efeito é engraçado. Algumas palavras são substituídas por símbolos. Ele tinha feito uma comparação entre mim e ele, que me era favorável, admito, em termos da opinião que as pessoas, nesta cidade antiga, podem ter a meu respeito, mas sinto-me na obrigação de o corrigir. Não porque eu não tenha boa opinião a meu respeito, mas porque os dados das nossas vidas são muito diferentes. Para quem vê de fora, a opinião pode ser muito diferente, e eu nem sequer acho estranho que o seja. Tanto mais que estamos numa cidade antiga, onde valores antigos, ligados às aparências, ainda vigoram.
Mas sim, concordo com ele: somos parecidos no motor da nossa coerência íntima. Escrevo-lhe mais ou menos isto, na camisola encarnada que lhe vou mandar. E digo as mesmas coisas ao telefone, porque, afinal de contas, nós os dois estamos a conversar.
terça-feira, 29 de junho de 2010
Eu, o assassino da rapariga loura e o homem de Angola
Noite de 12 para 15 de Setembro 2001 (publiquei antes a versão em inglês)
Estou dentro do carro com o assassino da rapariga loura. Ele estrangulou-a, com um fio de nylon. Evidentemente, vai também matar-me. Mas agora está a falar delicadamente comigo. É gentil e simpático. É um homem magro, de rosto comprido, normal. Eu estou do lado do volante e penso velozmente em todas as oportunidades. Será que consigo sair, abrindo a porta num movimento rápido? Vejo um canivete no tablier. Imagino a cena: espeto-lhe o canivete nos testículos quando ele me estiver a estrangular, e ele, com a dor, vai ter de me largar e eu fujo. Na verdade, a cena que imagino concretiza-se porque agora estou na rua, que é uma estrada – penso que tenho o mar à minha direita – e meto-me num táxi pedindo ao motorista que me leve ao Hospital. Tenho a garganta cortada e vou precisar de assistência rapidamente.
Mas mesmo no hospital não estou em segurança. O assassino e os seus amigos vão procurar-me para me matar. No quarto onde estou, meto-me debaixo da cama. Eles entram mas não se lembram de espreitar. São três. Depois, arranjo maneira de me porem numa maca, coberta com um lençol como se fosse um cadáver e levam-me pelos corredores sem chamar a atenção até me transferirem daquele hospital. Assim, os criminosos perdem-me o rasto.
Depois estou numa armazém e vejo uma lista com uma faca em cima, pregada uma pasta de papel. É para mim. Eu tiro a faca e desdobro o papel e vejo uma série de informações que não pedi. Ou melhor, não me recordo de ter pedido. São títulos de cartas que eu terei recebido ao longo de meses. Todas do mesmo homem. O homem é de Angola e a fortuna dele vem ali explicada: é multi-milionário.
Eu não me recordo de nada, e não percebo porque razão aquela lista está ali à minha espera. Releio as informações até que chego a uma cifra. É a conta: 103.311$50.
Eu não tenho dinheiro nenhum. Como me foi acontecer aquilo? Eu recordo-me vagamente de ter contratado um detective para me analisar umas cartas que andava a receber. Na verdade, só lhe perguntei quanto cobraria por essa tarefa. Ele disse-me que depois fazia um cálculo e me avisava.
Mas pelos vistos o detective não esperou pela minha aprovação.
Começo a recordar-me do homem de Angola. As suas cartas são extremamente carinhosas. E agora, no armazém, estou com a irmã do homem de Angola que anda por ali a trabalhar. Ela sabe o que se passa.
É uma mulher minúscula, metade do meu tamanho, mas cheia de força. Diz-me:
- Não estás a pensar meter outras pessoas a solucionar-te um problema que só tu arranjaste, pois não?
Respondo-lhe que não, mas que acho normal pedir ajuda.
Ela é muito dura. Ela resolve todas as suas coisas. Mas ela tem muito dinheiro e não tem problemas destes. Aliás, eu estava a pensar pedir ajuda a ela. Ou então, ao irmão. Afinal, se ele gosta de mim, why not?
Mas agora estou longe do armazém. A meio de um monte. Penso que continuo com o mar à minha direita. Há vários grupos de políticos que chegam e passam por ali. Vão todos para o alto do monte, onde há um encontro qualquer importante. Eu estou com o homem de Angola, e ele dá-me a mão. Junta os seus dedos fortes, o indicador e o médio, aos meus e é muito agradável.
Estou dentro do carro com o assassino da rapariga loura. Ele estrangulou-a, com um fio de nylon. Evidentemente, vai também matar-me. Mas agora está a falar delicadamente comigo. É gentil e simpático. É um homem magro, de rosto comprido, normal. Eu estou do lado do volante e penso velozmente em todas as oportunidades. Será que consigo sair, abrindo a porta num movimento rápido? Vejo um canivete no tablier. Imagino a cena: espeto-lhe o canivete nos testículos quando ele me estiver a estrangular, e ele, com a dor, vai ter de me largar e eu fujo. Na verdade, a cena que imagino concretiza-se porque agora estou na rua, que é uma estrada – penso que tenho o mar à minha direita – e meto-me num táxi pedindo ao motorista que me leve ao Hospital. Tenho a garganta cortada e vou precisar de assistência rapidamente.
Mas mesmo no hospital não estou em segurança. O assassino e os seus amigos vão procurar-me para me matar. No quarto onde estou, meto-me debaixo da cama. Eles entram mas não se lembram de espreitar. São três. Depois, arranjo maneira de me porem numa maca, coberta com um lençol como se fosse um cadáver e levam-me pelos corredores sem chamar a atenção até me transferirem daquele hospital. Assim, os criminosos perdem-me o rasto.
Depois estou numa armazém e vejo uma lista com uma faca em cima, pregada uma pasta de papel. É para mim. Eu tiro a faca e desdobro o papel e vejo uma série de informações que não pedi. Ou melhor, não me recordo de ter pedido. São títulos de cartas que eu terei recebido ao longo de meses. Todas do mesmo homem. O homem é de Angola e a fortuna dele vem ali explicada: é multi-milionário.
Eu não me recordo de nada, e não percebo porque razão aquela lista está ali à minha espera. Releio as informações até que chego a uma cifra. É a conta: 103.311$50.
Eu não tenho dinheiro nenhum. Como me foi acontecer aquilo? Eu recordo-me vagamente de ter contratado um detective para me analisar umas cartas que andava a receber. Na verdade, só lhe perguntei quanto cobraria por essa tarefa. Ele disse-me que depois fazia um cálculo e me avisava.
Mas pelos vistos o detective não esperou pela minha aprovação.
Começo a recordar-me do homem de Angola. As suas cartas são extremamente carinhosas. E agora, no armazém, estou com a irmã do homem de Angola que anda por ali a trabalhar. Ela sabe o que se passa.
É uma mulher minúscula, metade do meu tamanho, mas cheia de força. Diz-me:
- Não estás a pensar meter outras pessoas a solucionar-te um problema que só tu arranjaste, pois não?
Respondo-lhe que não, mas que acho normal pedir ajuda.
Ela é muito dura. Ela resolve todas as suas coisas. Mas ela tem muito dinheiro e não tem problemas destes. Aliás, eu estava a pensar pedir ajuda a ela. Ou então, ao irmão. Afinal, se ele gosta de mim, why not?
Mas agora estou longe do armazém. A meio de um monte. Penso que continuo com o mar à minha direita. Há vários grupos de políticos que chegam e passam por ali. Vão todos para o alto do monte, onde há um encontro qualquer importante. Eu estou com o homem de Angola, e ele dá-me a mão. Junta os seus dedos fortes, o indicador e o médio, aos meus e é muito agradável.
quinta-feira, 17 de junho de 2010
A aranha voadora e a filha do vagabundo
Lisboa, noite de 16 para 17 de Junho 2010
Há muita vigilância sobre estudantes. Indirectamente, eu pertenço ao grupo dos vigiados. Há polícia por todo o lado e sente-se a tensão no ar. Depois os estudantes aparecem montados num aranha gigantesca, mesmo muito gigantesca, tipo eléctrico com vários abdomens a servir de atrelados. É uma aranha muito mansa, mas está muito aborrecida. Isso vê-se pela expressão dos seus olhos multifacetados e inexpressivos. Eles desfilam pela rua principal da cidade, em cima dela, e eu estou no meio da multidão que os observa. Os policias sentem-se desconfortáveis. Não sabem como agir. Diz-se que aquela aranha também sabe voar. Os estudantes passam-me essa tarefa.
Então eu estou montada no dorso da aranha, mas é muito dificil manobrá-la para levantar voo, porque estamos numa rua estreita, secundária, e coberta. É uma rua cheia de gente, que não queremos atropelar. Então, levo a aranha um pouco pelo chão e um pouco pela parede, para ela criar velocidade e poder levantar voo, no fim da pequena rua.
É uma manobra arriscada. No fim da rua há um prédio em frente. Temos apenas uma nesga de céu aberto para levantar voo. Não sei como, mas consigo fazer com que a aranha levante voo.
Depois vejo o Sérgio, que é o vagabundo mais famoso da nossa zona. [Ele é muito alto, tem cabelo louro, e nos últimos anos criou uma grande barriga. Dorme nos bancos do jardim, vê televisão nas monstras das lojas e não fala com ninguém.] Vejo o Sérgio mas ele não está sozinho, leva uma criança num carrinho de bebé. É uma menina. É filha dele. É linda. Tem três anos, e está bem tratada, limpa e tudo, mas tem um ar muito sério, quase triste porque ninguém comunica com ela, e ela não comunica com ninguém. O seu pai não fala. Ele empurra o carrinho. É um carrinho apanhado no lixo, todo desengonçado. Eu não me atrevo a perguntar-lhe nada, porque é um vagabundo muito silencioso, mas duas mulheres crivam-no de perguntas. Essas mulheres são estrangeiras. Ele responde por monossílabos, e vai-se embora. Mas não está zangado nem nada, e isso espanta-me.
A criança acena, com as suas pequeninas mãos, como se quisesse ajuda. Eu não sei o que fazer, mas as duas mulheres estrangeiras sabem muito bem: aproximam-se dele, outra vez, tiram a criança do carrinho, e perguntam ao Sérgio como é que ela se chama, e oferecem-se para cuidar dela. A menina, no colo delas, olha para mim e estende-me os braços. Eu tenho quase vontade chorar, de tanto que desejo cuidar dela. Estou espantada por ele responder às estrangeiras e não parecer muito incomodado com a interferência delas na sua vida de vagabundo.
Eu estou realmente muito espantada com isso. Depois encontro o pequeno vagabundo que cresceu. Era uma criança abandonada que eu costumava ajudar. Desapareceu durante anos. Esteve no estrangeiro. Agora voltou, está muito bem vestido, e corre para mim de braços abertos:
-- Agora tenho uma vida óptima. Vês como tudo mudou? -- abraça-me com toda a força e eu estou muito comovida, porque cheguei a pensar que ele tinha morrido e tudo, e afinal a vida correu-lhe bem e ele safou-se.
Então penso que para o Sérgio ainda há esperança. E para a filha dele, todos os caminhos estão abertos.
Há muita vigilância sobre estudantes. Indirectamente, eu pertenço ao grupo dos vigiados. Há polícia por todo o lado e sente-se a tensão no ar. Depois os estudantes aparecem montados num aranha gigantesca, mesmo muito gigantesca, tipo eléctrico com vários abdomens a servir de atrelados. É uma aranha muito mansa, mas está muito aborrecida. Isso vê-se pela expressão dos seus olhos multifacetados e inexpressivos. Eles desfilam pela rua principal da cidade, em cima dela, e eu estou no meio da multidão que os observa. Os policias sentem-se desconfortáveis. Não sabem como agir. Diz-se que aquela aranha também sabe voar. Os estudantes passam-me essa tarefa.
Então eu estou montada no dorso da aranha, mas é muito dificil manobrá-la para levantar voo, porque estamos numa rua estreita, secundária, e coberta. É uma rua cheia de gente, que não queremos atropelar. Então, levo a aranha um pouco pelo chão e um pouco pela parede, para ela criar velocidade e poder levantar voo, no fim da pequena rua.
É uma manobra arriscada. No fim da rua há um prédio em frente. Temos apenas uma nesga de céu aberto para levantar voo. Não sei como, mas consigo fazer com que a aranha levante voo.
Depois vejo o Sérgio, que é o vagabundo mais famoso da nossa zona. [Ele é muito alto, tem cabelo louro, e nos últimos anos criou uma grande barriga. Dorme nos bancos do jardim, vê televisão nas monstras das lojas e não fala com ninguém.] Vejo o Sérgio mas ele não está sozinho, leva uma criança num carrinho de bebé. É uma menina. É filha dele. É linda. Tem três anos, e está bem tratada, limpa e tudo, mas tem um ar muito sério, quase triste porque ninguém comunica com ela, e ela não comunica com ninguém. O seu pai não fala. Ele empurra o carrinho. É um carrinho apanhado no lixo, todo desengonçado. Eu não me atrevo a perguntar-lhe nada, porque é um vagabundo muito silencioso, mas duas mulheres crivam-no de perguntas. Essas mulheres são estrangeiras. Ele responde por monossílabos, e vai-se embora. Mas não está zangado nem nada, e isso espanta-me.
A criança acena, com as suas pequeninas mãos, como se quisesse ajuda. Eu não sei o que fazer, mas as duas mulheres estrangeiras sabem muito bem: aproximam-se dele, outra vez, tiram a criança do carrinho, e perguntam ao Sérgio como é que ela se chama, e oferecem-se para cuidar dela. A menina, no colo delas, olha para mim e estende-me os braços. Eu tenho quase vontade chorar, de tanto que desejo cuidar dela. Estou espantada por ele responder às estrangeiras e não parecer muito incomodado com a interferência delas na sua vida de vagabundo.
Eu estou realmente muito espantada com isso. Depois encontro o pequeno vagabundo que cresceu. Era uma criança abandonada que eu costumava ajudar. Desapareceu durante anos. Esteve no estrangeiro. Agora voltou, está muito bem vestido, e corre para mim de braços abertos:
-- Agora tenho uma vida óptima. Vês como tudo mudou? -- abraça-me com toda a força e eu estou muito comovida, porque cheguei a pensar que ele tinha morrido e tudo, e afinal a vida correu-lhe bem e ele safou-se.
Então penso que para o Sérgio ainda há esperança. E para a filha dele, todos os caminhos estão abertos.
quarta-feira, 16 de junho de 2010
A rosa de fogo
Noite de 15 para 16 de Junho de 2010
A mulher está do outro lado da margem do rio. É um rio estreito. A mulher é jovem. Ela atira-me coisas. Sao engenhos explosivos. Vários tipos de bombas, artesanais ou sofisticadas. Eu apanho-as e lanço-as para longe de nós. A certa altura farto-me e atiro-lhe uma daquelas coisas de volta. Não lanço porém com muita força e o engenho cai no meio do rio.
Eu não quero causar danos, então entro na água para apanhar a bomba e atirá-la para longe de nós as duas e para fora do rio, por causa dos peixes. É uma coisa feita com barras de dinamite castanhas e um mecanismo para detonar. A mulher jovem não tem qualquer expressão no rosto. Eu percebo que fiquei sem tempo. Não sinto medo, nem dor, quando aquilo explode entre os meus dedos. Com o impacto da explosão subo, subo, subo no céu. Tenho entre as mãos uma rosa de fogo a arder, mas não me queima.
A mulher está do outro lado da margem do rio. É um rio estreito. A mulher é jovem. Ela atira-me coisas. Sao engenhos explosivos. Vários tipos de bombas, artesanais ou sofisticadas. Eu apanho-as e lanço-as para longe de nós. A certa altura farto-me e atiro-lhe uma daquelas coisas de volta. Não lanço porém com muita força e o engenho cai no meio do rio.
Eu não quero causar danos, então entro na água para apanhar a bomba e atirá-la para longe de nós as duas e para fora do rio, por causa dos peixes. É uma coisa feita com barras de dinamite castanhas e um mecanismo para detonar. A mulher jovem não tem qualquer expressão no rosto. Eu percebo que fiquei sem tempo. Não sinto medo, nem dor, quando aquilo explode entre os meus dedos. Com o impacto da explosão subo, subo, subo no céu. Tenho entre as mãos uma rosa de fogo a arder, mas não me queima.
segunda-feira, 14 de junho de 2010
Eu e o meu casamento com o Homem Moreno
Noite de Domingo, 16 de Setembro 2001
Vou-me casar e estou a preparar-se para a cerimónia. No meu quarto, procuro o estojo de maquilhagem, o necessaire e coisas separadas que andam por ali. Batons, lápis, rimel, etc. O quarto não é bem o meu quarto. É, parece-me, um lugar de passagem. É um quarto de raparigas. Depois, o quarto está cheio. Amigas, sobretudo. Vejo a Cristina, que é a única que me apetece ter junto de mim, naquela altura. A M. L. também se junta ao grupo. Não consigo arranjar-me, no meio daquela confusão. Digo:– Quero tudo fora daqui, já.
Elas parecem ficar surpreendidas, mas saem na hora. Eu digo à Cristina:
– Tu não, preciso de ti.
Ela fica.
E a verdade é que me vou casar com o Homem Moreno. À minha volta há aquela alegria natural das festas. As pessoas parecem muito contentes. Eu sinto que aquele é o desfecho lógico, e que contribui muito para que isso acontecesse. Só que eu não conheço bem o Homem Moreno. Também não é isso que me preocupa. Preocupa-me não me recordar quem era a pessoa que fazia parte da minha vida antes dele.
E a verdade é que me vou casar com o Homem Moreno. À minha volta há aquela alegria natural das festas. As pessoas parecem muito contentes. Eu sinto que aquele é o desfecho lógico, e que contribui muito para que isso acontecesse. Só que eu não conheço bem o Homem Moreno. Também não é isso que me preocupa. Preocupa-me não me recordar quem era a pessoa que fazia parte da minha vida antes dele.
E preocupa-me, também, saber se gosto dele, e se ele será o Companheiro ideal.
Peço ajuda, não sei a quem. Quero, desesperadamente, saber com quem andava antes de me ligar ao Homem Moreno. Sinto que, se casar com o Homem Moreno, que já está à minha espera e que parece profundamente encantado comigo, posso estar a trair alguém. Penso:
«Quem é que deixei para trás? A quem vou magoar? Será que me estou a envolver, e de uma maneira muito séria, quando há outra pessoa na minha vida de que não me recordo?»
Ninguém me consegue ajudar. O Homem Moreno tem um grande amigo. Esse grande amigo gosta muito de mim, e é solidário connosco porque é o grande confidente do meu noivo. Eu sei que ele me vai apoiar. Estou com algum receio que a minha vida mude muito, mas, acima de tudo, o que me angustia é a falta de memória.
E de repente, ou mudo de sonho, ou é mesmo nesse, ou acordo, e lembro-me, como uma revelação: como posso ir-me casar com o Homem Moreno se já vivo com o Otto?
Uma ilha, duas praias, barcos e jovens muçulmanos
Noite de Sábado 15 de Setembro
Avançamos por uma praia recortada por mar. Estamos longe da terra, próximo de um pontão muito, muito comprido, e próximo ainda de uma outra praia. No pontão podem ancorar barcos, de recreio, ou de longo curso. Eu gosto de ir pelo pontão, mas para já estou mais próximo desta praia, rodeada de mar por todo o lado. Não é bem uma ilha, mas é quase.
E depois estou no hotel, e há jovens muçulmanos lá. Não sei se o hotel lhes pertence, por uma questão geográfica, ou se, pelo contrário, eles são apenas empregados. Estou a arrumar as minhas coisas quando vejo uma caneta no chão. É uma caneta belíssima. Não tem tinta. Apanho-a mas tenho receio que os jovens muçulmanos me vejam e me acusem de ter ficado com uma caneta que não me pertence. Assim, entrego-a ao estudante que está sentado a uma mesa.
– É tua?
– Não – diz ele.
– Guarda-a e se aparecer alguém a provar que lhe pertence, entrega-a, se não podes acabar por ficar com ela – respondo.
Ele sorri, satisfeito. Depois, viro-me para o frigorífico e começo a tirar a carne para dentro de uns sacos térmicos. Na verdade, estivemos tanto tempo de férias e nunca gastamos tudo o que levávamos. Não quero deixar aquela comida toda a estragar-se. Os sacos ficam cheios rapidamente. É desconfortável imaginar que vou ter de carregar aquilo tudo de volta.
Depois estou de novo na praia, agora na outra, e quero tomar banho. Mas é muito perigoso. Volto para a outra praia onde está a Tita, e penso que me vou embora, no fim das férias e não cheguei a tomar um banho de mar como devia ser. Os barcos continuam ao largo, há barcos grandes, de cruzeiro, e eu sei que se andássemos pelo pontão, durante muito tempo, acabávamos por chegar até eles.
Avançamos por uma praia recortada por mar. Estamos longe da terra, próximo de um pontão muito, muito comprido, e próximo ainda de uma outra praia. No pontão podem ancorar barcos, de recreio, ou de longo curso. Eu gosto de ir pelo pontão, mas para já estou mais próximo desta praia, rodeada de mar por todo o lado. Não é bem uma ilha, mas é quase.
E depois estou no hotel, e há jovens muçulmanos lá. Não sei se o hotel lhes pertence, por uma questão geográfica, ou se, pelo contrário, eles são apenas empregados. Estou a arrumar as minhas coisas quando vejo uma caneta no chão. É uma caneta belíssima. Não tem tinta. Apanho-a mas tenho receio que os jovens muçulmanos me vejam e me acusem de ter ficado com uma caneta que não me pertence. Assim, entrego-a ao estudante que está sentado a uma mesa.
– É tua?
– Não – diz ele.
– Guarda-a e se aparecer alguém a provar que lhe pertence, entrega-a, se não podes acabar por ficar com ela – respondo.
Ele sorri, satisfeito. Depois, viro-me para o frigorífico e começo a tirar a carne para dentro de uns sacos térmicos. Na verdade, estivemos tanto tempo de férias e nunca gastamos tudo o que levávamos. Não quero deixar aquela comida toda a estragar-se. Os sacos ficam cheios rapidamente. É desconfortável imaginar que vou ter de carregar aquilo tudo de volta.
Depois estou de novo na praia, agora na outra, e quero tomar banho. Mas é muito perigoso. Volto para a outra praia onde está a Tita, e penso que me vou embora, no fim das férias e não cheguei a tomar um banho de mar como devia ser. Os barcos continuam ao largo, há barcos grandes, de cruzeiro, e eu sei que se andássemos pelo pontão, durante muito tempo, acabávamos por chegar até eles.
A mercearia, o jardim, o bebé
Noite de Segunda 10 de Setembro 2001
Sonho com uma mercearia. Sonho com uma rua íngreme, na parte antiga da cidade, onde me desloco, a descer com cuidado e algum à vontade. Sonho que o meu cabelo está lavado e bonito.
A mercearia fica na parte velha da cidade, num local que me é muito familiar, porque já lá vivi. E é um lugar aonde vou de vez em quando. Agora estou a descer a rua, íngreme e estreita, flectindo as pernas, como no Tai-Chi para não perder o equilíbrio e conseguir deslizar, confortavelmente e sem risco de cair.
Depois, a Tita está a pôr uma fralda num bebé. Não sei de qual das duas é esse bebé, embora a princípio ele seja mais dela do que meu. E a maneira dela pôr a fralda é deixando uma folga, para depois meter um gancho, para o bebé ser içado para um helicóptero que o vem buscar. E ela explica-me, várias vezes, como fazer isso. É uma fralda de pano, colocada em triângulo como antigamente se fazia, com um alfinete de segurança à frente.
E eu tenho o cabelo molhado, muito forte e muito macio, e estamos num jardim cheio de gente. É um jardim com esplanadas, com uma vereda em degraus. E eu pergunto a quem está junto de mim:
“Não é verdade que o meu cabelo está bonito?”
Depois, estou descer a vereda de mão dada com o bebé que agora é um rapazinho, muito pequeno, mas que já fala. E nós estamos a ter um diálogo incrível, só que às vezes não consigo ouvir bem o que ele me diz porque as pessoas à nossa volta falam mais alto. Então, curvo-me e ele repete tudo, e continuamos a conversar. Eu acho estranho termos uma conversa tão rica e tão coerente, sendo ele tão pequeno. E sobretudo pelo elo de empatia que há entre nós. E acho que as pessoas não podem deixar de reparar nisso, e forçosamente ficar espantadas.
Sonho com uma mercearia. Sonho com uma rua íngreme, na parte antiga da cidade, onde me desloco, a descer com cuidado e algum à vontade. Sonho que o meu cabelo está lavado e bonito.
A mercearia fica na parte velha da cidade, num local que me é muito familiar, porque já lá vivi. E é um lugar aonde vou de vez em quando. Agora estou a descer a rua, íngreme e estreita, flectindo as pernas, como no Tai-Chi para não perder o equilíbrio e conseguir deslizar, confortavelmente e sem risco de cair.
Depois, a Tita está a pôr uma fralda num bebé. Não sei de qual das duas é esse bebé, embora a princípio ele seja mais dela do que meu. E a maneira dela pôr a fralda é deixando uma folga, para depois meter um gancho, para o bebé ser içado para um helicóptero que o vem buscar. E ela explica-me, várias vezes, como fazer isso. É uma fralda de pano, colocada em triângulo como antigamente se fazia, com um alfinete de segurança à frente.
E eu tenho o cabelo molhado, muito forte e muito macio, e estamos num jardim cheio de gente. É um jardim com esplanadas, com uma vereda em degraus. E eu pergunto a quem está junto de mim:
“Não é verdade que o meu cabelo está bonito?”
Depois, estou descer a vereda de mão dada com o bebé que agora é um rapazinho, muito pequeno, mas que já fala. E nós estamos a ter um diálogo incrível, só que às vezes não consigo ouvir bem o que ele me diz porque as pessoas à nossa volta falam mais alto. Então, curvo-me e ele repete tudo, e continuamos a conversar. Eu acho estranho termos uma conversa tão rica e tão coerente, sendo ele tão pequeno. E sobretudo pelo elo de empatia que há entre nós. E acho que as pessoas não podem deixar de reparar nisso, e forçosamente ficar espantadas.
quinta-feira, 10 de junho de 2010
Me, The Murder Man and The Man From Angola
Noite de 11 para 12 de Setembro 2001
I am in the car with the Murder Man, who killed the Blonde Girl. He’s a pale guy, pretty polite and he’s talking about stuff, nothing important really. He shows me some documents, concerning his talking, and goes on speaking in a civilized way. He’s not talking about murdering or whatsoever nor is he tracking me. Although I do know he will try to murder me. That’s his intention. And I also know that he doesn’t feel sorry about the poor Blonde Girl. He just has no feelings toward people. I’m not in panic. I’m in stress thinking over how to escape. I’m sitting behind the steering wheel. I know the Murder Man is going to killed me with a nylon row around my neck, the same way he killed the Blonde Girl. I figure out may be I’ll have time to run away if only I would have something to defend myself. Then I realize there is a little Switzerland army knife in the dash board. In my mind I picture the scene: I’ll drill his guts because a little knife like that can’t be useful for attacking hearts or whatsoever. Plus, the man is strong. His guts are his weak point. Anyway, imagining it is, suddenly, having it done. Now I’m running away the car, but I’m hurt. I have blood in my injured neck. Anyhow he managed to attack me, I don’t know how and when. This part of the action – me attacking him, him attacking me –, was not recorded or even took place in the dream. Anyway, I am now running to a cab and asking the driver to drive me to the Hospital. Then, I’m already in the Hospital, but the Murder Man has friends who are there searching for me. I realize I need to hide myself under my bed. They enter the room, but they don’t look under the bed. Ten I realize also I must take off to another hospital. I don’t know how many of them are still around the place. So I put myself in a litter, covering my body with a blanket, like if I was a corpse going to the morgue and I made myself being drive to those huge corridors, safe and hidden, and they managed to take me off to another safe place.
And then, in the very same night, but in a completely different scenario, with no memories of the other dream, I’m entering a warehouse, where somehow I work or somehow belong to me. And in the wooden wall there is a long list, written in several sheets of paper, fixed on the wall by a tiny knife. I take the list realizing that it has lots of information about some letters, whose subjects, in tittles, are included in the list. All letters were written to me by the same man: the man from Angola, and there is an explanation about the man’s huge fortune. He’s multimillionaire because he has all his business in Angola.
I don’t understand why I’m receiving all those information. I don’t even remember I’ve been receiving so many letters from that Angola Man. I keep on reading and I get horrified as I discovered I have to pay to the detective I even don’t remember to engage. And the bill is bigger than I can afford.
And now I begin to remember about the Angola Man, not him really, but his extremely affectionate letters. But I’m deeply concerned about my debt. The Angola Man’s sister is working around in the same warehouse. She’s very small about half of my size, but she’s incredibly strong. She tells me:
– You are not thinking of asking someone else to fix the problems you got to yourself, are you?
I say:
– No, course not, but I think it is pretty normal to ask for help.
She’s very tough. She can handle her own business. But she’s very rich, she doesn’t have to deal with this kind of shit. Anyway I was thinking of asking for her help all right. Or for Angola Man’s help. Why not if he’s so found of me? It is so little money for them!
Now I’m far from the warehouse. On my right hand there is the seaside. I’m climbing a little mountain. Several politics are around, claiming the mountain also. Everybody goes to the top of the hill. Over there, there is an important meeting. And now that man of Angola is with me holding my hand affectionately. His fingers are strong.
I am in the car with the Murder Man, who killed the Blonde Girl. He’s a pale guy, pretty polite and he’s talking about stuff, nothing important really. He shows me some documents, concerning his talking, and goes on speaking in a civilized way. He’s not talking about murdering or whatsoever nor is he tracking me. Although I do know he will try to murder me. That’s his intention. And I also know that he doesn’t feel sorry about the poor Blonde Girl. He just has no feelings toward people. I’m not in panic. I’m in stress thinking over how to escape. I’m sitting behind the steering wheel. I know the Murder Man is going to killed me with a nylon row around my neck, the same way he killed the Blonde Girl. I figure out may be I’ll have time to run away if only I would have something to defend myself. Then I realize there is a little Switzerland army knife in the dash board. In my mind I picture the scene: I’ll drill his guts because a little knife like that can’t be useful for attacking hearts or whatsoever. Plus, the man is strong. His guts are his weak point. Anyway, imagining it is, suddenly, having it done. Now I’m running away the car, but I’m hurt. I have blood in my injured neck. Anyhow he managed to attack me, I don’t know how and when. This part of the action – me attacking him, him attacking me –, was not recorded or even took place in the dream. Anyway, I am now running to a cab and asking the driver to drive me to the Hospital. Then, I’m already in the Hospital, but the Murder Man has friends who are there searching for me. I realize I need to hide myself under my bed. They enter the room, but they don’t look under the bed. Ten I realize also I must take off to another hospital. I don’t know how many of them are still around the place. So I put myself in a litter, covering my body with a blanket, like if I was a corpse going to the morgue and I made myself being drive to those huge corridors, safe and hidden, and they managed to take me off to another safe place.
And then, in the very same night, but in a completely different scenario, with no memories of the other dream, I’m entering a warehouse, where somehow I work or somehow belong to me. And in the wooden wall there is a long list, written in several sheets of paper, fixed on the wall by a tiny knife. I take the list realizing that it has lots of information about some letters, whose subjects, in tittles, are included in the list. All letters were written to me by the same man: the man from Angola, and there is an explanation about the man’s huge fortune. He’s multimillionaire because he has all his business in Angola.
I don’t understand why I’m receiving all those information. I don’t even remember I’ve been receiving so many letters from that Angola Man. I keep on reading and I get horrified as I discovered I have to pay to the detective I even don’t remember to engage. And the bill is bigger than I can afford.
And now I begin to remember about the Angola Man, not him really, but his extremely affectionate letters. But I’m deeply concerned about my debt. The Angola Man’s sister is working around in the same warehouse. She’s very small about half of my size, but she’s incredibly strong. She tells me:
– You are not thinking of asking someone else to fix the problems you got to yourself, are you?
I say:
– No, course not, but I think it is pretty normal to ask for help.
She’s very tough. She can handle her own business. But she’s very rich, she doesn’t have to deal with this kind of shit. Anyway I was thinking of asking for her help all right. Or for Angola Man’s help. Why not if he’s so found of me? It is so little money for them!
Now I’m far from the warehouse. On my right hand there is the seaside. I’m climbing a little mountain. Several politics are around, claiming the mountain also. Everybody goes to the top of the hill. Over there, there is an important meeting. And now that man of Angola is with me holding my hand affectionately. His fingers are strong.
segunda-feira, 7 de junho de 2010
O Tigre e o voo dos pássaros
Noite de Sexta-Feira, 5 de Outubro 2001
Estamos dentro de uma casa de aldeia. Não conheço as pessoas, mas, naquele contexto, tudo se torna familiar. A casa não pertence particularmente a nenhum de nós, mas todos a podemos usar. Está uma tigela de leite no chão. Um dos homens está a fazer queijo. Ele deita flores de nardo dentro da vasilha. Os outros estão a fazer outras coisas. Naquela casa recriam-se actividades antigas, como essa de fazer queijo de forma não industrial. Por qualquer razão, eu sou a única mulher. Ou talvez não haja razão nenhuma especial para isso.
Perguntamos ao homem que está a fazer queijo quanto tempo vai demorar para podermos comê-lo. Avançamos algumas datas e o homem ri das nossas previsões (de dias) e diz:
– Em duas horas o queijo está feito.
Como é tão rápido, resolvemos aproximar-nos da vasilha e ver como tudo se processa. O leite coalha e forma uma bola. Assim, no tempo que demora a dizê-lo. Agora o queijo está feito e é só preciso trabalhar aquela bola, espremer o soro, essas coisas.
Então toda a gente sai. Menos eu, e um rapaz que me pergunta se gosto de gatos. Eu sei que aquela pergunta encerra uma armadilha por isso respondo cuidadosamente que sim, mas não tenho tempo, nem vida, nem disponibilidade, actualmente, para ter animais. Os animais precisam de quem lhes dê atenção.
Ele diz que tem um poblema e que não é bem de um gato que está a falar. Na verdade, e através de um circuito ilegal, adquiriu um animal que não consegue tratar nem tem condições para tê-lo. Ele só quer que eu lho guarde uns tempos, ali, naquela casa, até descobrir como se há-de ver livre dele. O animal está dentro de uma caixa de madeira baixa, com grades e com uma tranca de ferro, poderosa.
Eu não quero, mas entretanto não tenho como recusar o pedido. Entretanto, olho para o tigre (ou será uma chita?) jovem que está dentro da jaula, dentro da casa. É um animal de beleza estarrecedora. O pelo, o corpo, os olhos. Sinto vontade de chorar ao vê-lo ali, naquela caixa grosseira. Além disso, o tigre (chita?) tem fome. Não comeu. O rapaz que me pediu para guardá-lo diz-me isso antes de se ir embora.
Eu não quero que o tigre me olhe. Nem que me veja. Sei que isso pode ligar-nos e eu não me sinto com força para assumir essa responsabilidade. Saio, para ir procurar comida para ele.
A casa de aldeia fica numa vila. As pessoas estão em suas casas ocupadas nos seus trabalhos, muitos deles artesanais. Estou num largo, diante da casa do sapateiro. Dentro da casa do sapateiro há crianças.
Mas enquanto ando à procura de comida para o tigre, não consigo deixar de voltar atrás e ir a casa, várias vezes, para ver como tudo está. É muito estranho. O Tigre não rosna, nem está inquieto nem furioso, como seria de esperar. O Tigre, é um tigre genuinamente feliz, se esta palavra se pode aplicar a este animal, ainda por cima em tais condições. Aqui, no sonho, aplica-se contudo. Além disso, é um animal incrivelmente inteligente. Ele está a tentar abrir o ferrolho da jaula. Paciente e tenazmente.
Um dos homens tinha dito:
– A tranca é muito poderosa. É impossível conseguir abri-la.
Mas cada vez que entro em casa, o Tigre já resolveu mais uma daquelas etapas com as suas patas de veludo. A certa altura a tranca salta. Agora, basta ele dar um empurrão e a jaula abre-se. Encosto-me à porta e tento trancá-la com o meu peso.
Agora a caixa é toda de madeira, sem grades. Ele não me vê, eu não o vejo a ele. Apoio as minhas costas, com toda a força, à porta e tento contrariar o impulso do tigre para a abrir. Ele não se atira violentamente. Pelo contrário, dá impulsos suaves mas firmes. Ele não faz as coisas às cegas. E, reparo eu, não rosna, nem brame. Não parece um animal selvagem.
Com a força das minhas costas, e num esforço enorme, trago a caixa para a rua, e começo a empurrá-la pela rua acima. É um processo muito difícil, porque tenho, simultaneamente, de empurrar a caixa e de empurrar a porta para a manter fechada. Ninguém me ajuda e eu não quero gritar por dois motivos. Por um lado, porque já não tenho forças. Por outro, porque não quero que o tigre perceba o que se está a passar, e que com um pouco mais de energia pode abrir a porta.
Então vejo um polícia a conversar à porta de um café. O polícia vem ajudar-me quando lhe conto o que está a acontecer. Mas eu não quero que o tigre seja levado para uma esquadra, e depois para um jardim zoológico. Estou num dilema terrível. Eu e o Tigre (ou a chita?) já temos uma ligação. Sinto-me profundamente ligada a ele. Quero devolvê-lo ao seu mundo. O polícia tranquiliza-me: o tigre vai ser entregue aos cuidados de um grupo de Defesa da Vida Natural, com quem ele trabalha, e que é um departamento da sua esquadra.
Então o tigre solta-se.
Não sei como foi, mas agora está livre. Nunca vi uma criatura tão bela e tão feliz. Ele corre e salta pelo prazer de correr e saltar e estar vivo. Ele salta de uma maneira inconcebível, à altura do voo dos pássaros. Os seus saltos são de uma beleza geométrica, pura e indizível.
Sei que ele está com fome, mas ao contrário do que seria de esperar, a sua primeira acção não é atacar ninguém à procura de comida. É sentir, literalmente, a alegria da liberdade.
Sinto lágrimas a correr-me pela cara abaixo. Digo ao polícia:
– Vê? Como se pode prender um animal destes? Como se podem meter animais assim em jaulas e jardins zoológicos? É um crime.
Agora, estou com os elementos da Brigada da Conservação da Natureza. Peço-lhes comida para dar ao tigre. Um deles tira de um cilindro de metal, a baixíssimas temperaturas, uma caixa de tampa amarela que tem bisnagas de comida para tigres. Está tudo enevoado por causa do frio, mas, nas bisnagas, a comida, um concentrado fortíssimo de proteínas, está à temperatura ambiente.
O homem diz:
– Meta a bisnagas entre as grades e tente meter a comida na boca do tigre.
Respondo que prefiro pegar-lhe ao colo. Então, estou a agarrar numa criança de três anos que me estende os braços como se estivesse a abrir as asas. Meto-lhe a comida na boca. Sei que vai voltar a ser tigre e que vai ser devolvido à sua natureza. Mas os homens que vão tratar disso prometem fazê-lo de uma forma não traumática. Sei, também, que vou sentir a falta dele para sempre.
A criança chupa gulosamente a pasta que sai da bisnaga. A cara da criança está suja com bocados de comida que lhe escorrem dos cantos da boca. Ela come sofregamente porque tem muita fome, mas está muito bem disposta.
Eu quero ir ter com o Otto mas não pelos subterrâneos.
NOITE DE 25 PARA 26 DE OUTUBRO DE 2000
Estou com o Otto e vamos entrar num local de diversões, que está agora desactivado. Vamos lá almoçar. Ou jantar. Vamos lá tomar uma refeição. Estamos muito bem dispostos. O local não é deserto. Entramos para uma sala, e já lá está mais gente. Só que a certa altura já são muitas pessoas a juntarem-se à nossa mesa. Eu trago um prato que o cozinheiro me passa, e pergunto para quem é, mas toda a gente está servida. Há comida a mais.
Então eu e o Otto saímos, e a certa altura estamos naquela espécie de feira. Ele quer ir a um dos restaurantes mais feios, e digo que não. É uma espécie de Hamburger House, no primeiro andar de um edifício velho e feio. E estamos nas escadas e de repente ouvimos um ruído caótico e dissonante, de uma harmonia aterradora. Gritos de loucos, choros de crianças, vozes de mulheres, e uma melopeia de vozes sincopadas que pronunciavam umas palavras, como se fossem mantras.
Ficamos paralisadas de espanto e de medo. O grupo, um grupo enorme, de negros, homens, mulheres, crianças, passa por nós, em passo de corrida.
E agora, volto a ouvi-los. Estou junto do segurança do Parque, e quero meter-me na casa onde ele estava, mas ele não abre a porta. Diz que não podemos fazer um gesto ou um som, quando eles passam:
“Se olharmos para eles e eles olharem para nós, é o fim” – explica num murmúrio.
Eu estou a mastigar uma ervinha e paro, congelada. Os gritos e os murmúrios crescem à medida que o grupo se aproxima de nós. Há uma altura em que sinto que eles nos olham. O porteiro tinha dito que eles destruíam as pessoas, completamente, quando isso acontecia. Eu só não consigo perceber é porque é que não reforçam a guarda. Ou porque é que o problema não é atacado de raiz.
Enfim, eles desaparecem e respiro de alívio. Depois, o Bernardo está comigo e o homem deixa-nos entrar para a casa do guarda. Lá dentro há escadas em caracol. Podemos descer por ali, e atravessar sob o chão, para o outro edifício. Eu quero ir ter com o Otto. Depois digo ao Bernardo que não vou por baixo, porque tenho medo.
Eu quero ir ter com o Otto mas não pelos subterrâneos.
Estou com o Otto e vamos entrar num local de diversões, que está agora desactivado. Vamos lá almoçar. Ou jantar. Vamos lá tomar uma refeição. Estamos muito bem dispostos. O local não é deserto. Entramos para uma sala, e já lá está mais gente. Só que a certa altura já são muitas pessoas a juntarem-se à nossa mesa. Eu trago um prato que o cozinheiro me passa, e pergunto para quem é, mas toda a gente está servida. Há comida a mais.
Então eu e o Otto saímos, e a certa altura estamos naquela espécie de feira. Ele quer ir a um dos restaurantes mais feios, e digo que não. É uma espécie de Hamburger House, no primeiro andar de um edifício velho e feio. E estamos nas escadas e de repente ouvimos um ruído caótico e dissonante, de uma harmonia aterradora. Gritos de loucos, choros de crianças, vozes de mulheres, e uma melopeia de vozes sincopadas que pronunciavam umas palavras, como se fossem mantras.
Ficamos paralisadas de espanto e de medo. O grupo, um grupo enorme, de negros, homens, mulheres, crianças, passa por nós, em passo de corrida.
E agora, volto a ouvi-los. Estou junto do segurança do Parque, e quero meter-me na casa onde ele estava, mas ele não abre a porta. Diz que não podemos fazer um gesto ou um som, quando eles passam:
“Se olharmos para eles e eles olharem para nós, é o fim” – explica num murmúrio.
Eu estou a mastigar uma ervinha e paro, congelada. Os gritos e os murmúrios crescem à medida que o grupo se aproxima de nós. Há uma altura em que sinto que eles nos olham. O porteiro tinha dito que eles destruíam as pessoas, completamente, quando isso acontecia. Eu só não consigo perceber é porque é que não reforçam a guarda. Ou porque é que o problema não é atacado de raiz.
Enfim, eles desaparecem e respiro de alívio. Depois, o Bernardo está comigo e o homem deixa-nos entrar para a casa do guarda. Lá dentro há escadas em caracol. Podemos descer por ali, e atravessar sob o chão, para o outro edifício. Eu quero ir ter com o Otto. Depois digo ao Bernardo que não vou por baixo, porque tenho medo.
Eu quero ir ter com o Otto mas não pelos subterrâneos.
terça-feira, 2 de março de 2010
1994, A sense of ending
NOITE DE 14 PARA 15 DE MAIO DE 1994 Pelas ruas, multidões correm mais ou menos ao acaso.
Sigo uma dessas correntes. Estou numa cidade, num país, que não reconheço, embora me seja, de algum modo, familiar. Há uma certa agitação por todo o lado. Sintomas de guerra iminente. É preciso fugir. Atrás de mim, há um homem que me chama, insistentemente, de volta. É alguém a quem pertenço e que me pertence. Penso que é o meu marido.
A terra é uma mistura de pequena cidade africana e vila portuguesa medieval. Tem ruas estreitas que desembocam em largos, e as casas são antigas. À volta o espaço é amplo, desamparado.
É um espaço africano.
Entramos num edifício grande, percorremo-lo apressadamente, e passamos pelas caves, aonde funcionam – e estão estranhamento em funcionamento! –, as cozinhas. Uma das cozinheiras insiste em fazer umas frituras que lhe saem muito mal e os seus ajudantes gozam com ela. A cozinheira, numa mistura de resignação e indiferença, continua a sua tarefa.
O país está mesmo em guerra total. Há milhares e milhares de pessoas em fuga. No entanto, e à revelia de todo esse caos, há situações que persistem. Como aquela cozinha, com todos aqueles trabalhadores a fazer aquela comida toda, como se nada fosse.
Atravessamos o edifício. Saimos. Continuo acompanhada.
Cá fora é o caos. Fugimos até que encontramos um outro homem, conhecido do meu marido. Paramos a conversar, rodeados de pessoas. Cresce a sensação de perigo. Mas eles continuam a conversar, encostados a um carro, como se nada fosse. Antes disso, e no alto de uma ladeira pela qual me arrastara penosamente, volto-me para trás. Destroçada. Choro amargamente pelos meus filhos, tão pequenos e perdidos no caos da guerra. Estou esmagada pelo desgosto e pela minha impotência
E agora toda a gente sabe que há um grupo de guerrilheiros que vêm a correr para a cidade, que está a ser atacada por todos os lados.
O meu peito dói-me, estala de dor. A dor é muito fisica.
Entretanto, as pessoas que nos rodeiam, arranjam-nos transportes e de imediato o segundo homem dá-nos indicações para entrarmos no carro dele, onde só consigo entrar – tão mal arrumado está! – por trás.
Não conseguimos fugir à primeira: ficamos encurralados na praça, rodeados de adolescentes fardados, rapazes e raparigas, a tentarem virar-nos o carro. Gritam, insultam, cospem, enlouquecidos. Estamos ao lado de uma estação de caminhos-de-ferro.
Sinto uma terrível falta de ar. O meu marido deixa-me respirar por uma nesga da porta.
Continuo a sentir-me extremamente protegida por ele. Entretanto surge em cena um homem mais velho que apita e dá ordem aos miúdos que corram a apanhar um comboio que acaba de entrar na estação.
E eles deixam-nos finalmente em paz.
Andamos muito. Atravessamos campos africanos (savanas) ,aonde as casas são europeias, e pequenas povoações totalmente destruídas. Os únicos seres vivos que avistamos, fugazmente, nas ruínas são crianças.
Chegamos então a uma casa de madeira, intacta.
Recebe-nos uma mulher. Julgo que é nossa amiga. A mulher diz:
"Aqui vocês estão em segurança."
Ela é forte e optimista. Ela é carinhosa e faz-nos sentir bem, porque nos tranquiliza. Ela diz que ali a guerra ainda não chegou. Ou se chegou, já se foi embora.
Falo-lhe nos meus filhos. A dor tão forte que me esmaga o peito, numa agonia sem lenitivo.
Então aparece-me o Lula. Ele safou-se muito bem. Diz: "vesti-me de rapariga, e não me fizeram mal." Depois dá-me noticias dos outros, que "também estão bem." Fico num tal estado de felicidade que não consigo reagir.
Entretanto sou avisada pela mulher que o dinheiro perdeu o valor, porque se tornou demasiadamente valioso e simplesmente deixou de existir. "As pessoas têm que encontrar outro tipo de economia, formas novas ou muito antigas", diz ela.
Fico a pensar no que ela me diz.
Imagem: «The Sense of an Ending: Studies in the Theory of Fiction», reproduzida a partir de
http://images.google.pt/imgres?imgurl=http://www.unizar.es/departamentos/filologia_inglesa/garciala/images/apocalypse.jpg&imgrefurl=http://www.unizar.es/departamentos/filologia_inglesa/garciala/otros/kermode.html&usg=__TPLkjY8V74lZIghlKNyhuXZ176E=&h=281&w=500&sz=24&hl=pt-PT&start=44&um=1&itbs=1&tbnid=4YoKnkXhoNAPJM:&tbnh=73&tbnw=130&prev=/images%3Fq%3Dapocalypse%26start%3D40%26um%3D1%26hl%3Dpt-PT%26sa%3DN%26rlz%3D1T4TSEH_pt-PT___PT363%26ndsp%3D20%26tbs%3Disch:1
Sigo uma dessas correntes. Estou numa cidade, num país, que não reconheço, embora me seja, de algum modo, familiar. Há uma certa agitação por todo o lado. Sintomas de guerra iminente. É preciso fugir. Atrás de mim, há um homem que me chama, insistentemente, de volta. É alguém a quem pertenço e que me pertence. Penso que é o meu marido.
A terra é uma mistura de pequena cidade africana e vila portuguesa medieval. Tem ruas estreitas que desembocam em largos, e as casas são antigas. À volta o espaço é amplo, desamparado.
É um espaço africano.
Entramos num edifício grande, percorremo-lo apressadamente, e passamos pelas caves, aonde funcionam – e estão estranhamento em funcionamento! –, as cozinhas. Uma das cozinheiras insiste em fazer umas frituras que lhe saem muito mal e os seus ajudantes gozam com ela. A cozinheira, numa mistura de resignação e indiferença, continua a sua tarefa.
O país está mesmo em guerra total. Há milhares e milhares de pessoas em fuga. No entanto, e à revelia de todo esse caos, há situações que persistem. Como aquela cozinha, com todos aqueles trabalhadores a fazer aquela comida toda, como se nada fosse.
Atravessamos o edifício. Saimos. Continuo acompanhada.
Cá fora é o caos. Fugimos até que encontramos um outro homem, conhecido do meu marido. Paramos a conversar, rodeados de pessoas. Cresce a sensação de perigo. Mas eles continuam a conversar, encostados a um carro, como se nada fosse. Antes disso, e no alto de uma ladeira pela qual me arrastara penosamente, volto-me para trás. Destroçada. Choro amargamente pelos meus filhos, tão pequenos e perdidos no caos da guerra. Estou esmagada pelo desgosto e pela minha impotência
E agora toda a gente sabe que há um grupo de guerrilheiros que vêm a correr para a cidade, que está a ser atacada por todos os lados.
O meu peito dói-me, estala de dor. A dor é muito fisica.
Entretanto, as pessoas que nos rodeiam, arranjam-nos transportes e de imediato o segundo homem dá-nos indicações para entrarmos no carro dele, onde só consigo entrar – tão mal arrumado está! – por trás.
Não conseguimos fugir à primeira: ficamos encurralados na praça, rodeados de adolescentes fardados, rapazes e raparigas, a tentarem virar-nos o carro. Gritam, insultam, cospem, enlouquecidos. Estamos ao lado de uma estação de caminhos-de-ferro.
Sinto uma terrível falta de ar. O meu marido deixa-me respirar por uma nesga da porta.
Continuo a sentir-me extremamente protegida por ele. Entretanto surge em cena um homem mais velho que apita e dá ordem aos miúdos que corram a apanhar um comboio que acaba de entrar na estação.
E eles deixam-nos finalmente em paz.
Andamos muito. Atravessamos campos africanos (savanas) ,aonde as casas são europeias, e pequenas povoações totalmente destruídas. Os únicos seres vivos que avistamos, fugazmente, nas ruínas são crianças.
Chegamos então a uma casa de madeira, intacta.
Recebe-nos uma mulher. Julgo que é nossa amiga. A mulher diz:
"Aqui vocês estão em segurança."
Ela é forte e optimista. Ela é carinhosa e faz-nos sentir bem, porque nos tranquiliza. Ela diz que ali a guerra ainda não chegou. Ou se chegou, já se foi embora.
Falo-lhe nos meus filhos. A dor tão forte que me esmaga o peito, numa agonia sem lenitivo.
Então aparece-me o Lula. Ele safou-se muito bem. Diz: "vesti-me de rapariga, e não me fizeram mal." Depois dá-me noticias dos outros, que "também estão bem." Fico num tal estado de felicidade que não consigo reagir.
Entretanto sou avisada pela mulher que o dinheiro perdeu o valor, porque se tornou demasiadamente valioso e simplesmente deixou de existir. "As pessoas têm que encontrar outro tipo de economia, formas novas ou muito antigas", diz ela.
Fico a pensar no que ela me diz.
Imagem: «The Sense of an Ending: Studies in the Theory of Fiction», reproduzida a partir de
http://images.google.pt/imgres?imgurl=http://www.unizar.es/departamentos/filologia_inglesa/garciala/images/apocalypse.jpg&imgrefurl=http://www.unizar.es/departamentos/filologia_inglesa/garciala/otros/kermode.html&usg=__TPLkjY8V74lZIghlKNyhuXZ176E=&h=281&w=500&sz=24&hl=pt-PT&start=44&um=1&itbs=1&tbnid=4YoKnkXhoNAPJM:&tbnh=73&tbnw=130&prev=/images%3Fq%3Dapocalypse%26start%3D40%26um%3D1%26hl%3Dpt-PT%26sa%3DN%26rlz%3D1T4TSEH_pt-PT___PT363%26ndsp%3D20%26tbs%3Disch:1
Os Enamorados
NOITE DE 14 PARA 15 DE JUNHO DE 1998
Estou junto de um muro, parece o balcão de um bar, só que é na rua. Em cima desse muro há vários baralhos de cartas de tarô. São muito bonitos. E são da loja em frente do muro-balcão, só que a loja está fechada porque é hora do almoço. E eu estou espantada porque qualquer pessoa os pode levar. Sento-me num banco alto e fico a olhá-los, e pego no que está em cima. É uma edição de luxo. É dourada, um dourado de ouro velho. Na capa tem os Enamorados.
Folheio as cartas como se fossem um livro. E são um livro. Vejo algumas definições das lâminas. Têm correspondência com as cartas de jogar.
Antes há um homem. É jornalista, e está a correr por uma estrada de alcatrão. Ao lado dele está uma criança que também corre. Ele ri-se. E tira os sapatos. Só tira um. E desaperta a gravata e a atira-a fora. Diz:
“Fui director de tantas coisas, e agora não quero nada. Não estou nada interessado na minha vida anterior. Agora sou livre.”
E ri, e corre como se brincasse, pelo chão de asfalto, só com um pé calçado. E eu vou atrás dele. Ele quer mostrar uma coisa às pessoas. E quando pára, inesperadamente, estamos diante de um lago de água fresca, onde se pode tomar banho e mergulhar. Este é um segredo que ninguém conhece, porque estamos fora da cidade. É um paraíso por explorar. E ele quer que todos saibam disso.
E ali está ele, a brincar na água, tão próximo de uma estrada normal da cidade normal.
Sai da água, com a criança.É um rapaz de sete anos. E vão para a estrada pedir boleia. Eu sigo-os. E o que acontece é que ninguém pára, e ele fica um pouco espantado. Na verdade, tal como ele imagina as coisas, havia de parar logo um carro para os levar de volta, tanto mais que ele está molhado.
Depois, atravessa a estrada, lá pára então um carro e leva-os, e eu volto para o meu banco, diante do muro, e penso, então, roubar o baralho dos Enamorados.
Depois vejo o homem, o jornalista, de pé contra outro muro. Estão a prendê-lo pelos polegares que atravessam uns orifícios no muro, e pelos pés.
Depois estou no Algarve, a contar-lhe o que tinha visto as pessoas fazerem-lhe. Mas ao mesmo tempo sei que o fizeram a uma projecção, a uma emanação dele, porque ele tem o grande poder de dar às pessoas essas ilusões.
Assim, ele está ali, em liberdade, a seguir a sua estrada.
Eu digo: “estavam a prender aquilo que pensam que tu és”.
E conto-lhe que lhes roubei o baralho de tarô. Ele diz que não foi uma boa ideia:
“É como se trouxesses, de lá, essa energia, dentro da tua carteira.”
E eu pergunto:
“Devo fazer o quê?” E ele diz,
“se atirares com elas pela janela, as cartas têm poderes para se organizar de novo, todas juntas, num baralho. E tu ficas livre."
domingo, 28 de fevereiro de 2010
Before the wedding party 1998
NOITE DE 26 PARA 27 DE FEVEREIRO DE 1998
É uma terra estrangeira e familiar, um local de trabalho onde me sinto como se estivesse de férias, porque tem uma luz lindíssima, como se fosse de Verão. Faz-me lembrar a luz do Alentejo. E é muito quente. Estão a construir uma rampa que eu costumava subir e que era muito íngreme. Agora, há máquinas a nivelar o piso. Nivelam o piso esmagando todos os carros ali estacionados, e espalhando depois terra e brita por cima deles. Vejo as máquinas a calcarem os carros, e a tapá-los com terra, e a aplanar o caminho, e eu ando à procura de casa, só que já tenho casa. E é uma casa que partilho com um amigo meu, que é estrangeiro, e temos dois filhos que são dele.
Nós vamos casar. Agora os filhos dele são, também, meus.
Entretanto começamos a dançar. Fico espantada, não sabia que ele sabia dançar. E ele fica espantado: não sabia, também, que eu dançava. E à medida que vamos dançando é como se eu adivinhasse os passos dele, que são lentos e muito elaborados, e não é nenhuma dança que eu tivesse conhecido antes, ou que alguma vez tivesse aprendido. E é como se fosse uma respiração, e é deslumbrantemente bom.
E depois há uma festa de trabalho. A essa festa vêm japoneses, porque há associações que vão ser levadas acabo, e o meu trabalho tem a ver com isso. Parece que vou ser apresentada a umas pessoas, e é por isso que me pediram para lá estar. E entretanto vamos conversando uns com os outros, e apresentam-nos a umas pessoas, entre as quais se encontram crianças prodígios. São crianças horrorosas, como as que vi (ontem) num programa de televisão.
Essas crianças desaparecem de seguida.
Subo umas escadas e estou no último andar do prédio onde vou viver, e há muita luz que se derrama pela clarabóia do tecto. Do patamar onde me encontro as escadas têm azulejos arte-nova, muito bonitos, mas alguns estão estragados. A senhoria, que está comigo, diz:
“E preciso mandar arranjar estes azulejos”.
Pergunto:
“Onde posso encontrar quem conheça ainda esta técnica?”
Ela diz que é muito fácil. Acontece que no mesmo prédio onde estamos, exactamente no andar debaixo do meu, há um homem que ainda trabalha nisso. “É um artista, um mestre”, diz ela. E chama por ele.
O homem sai de casa. A casa dele fica mesmo por baixo, à direita. É um homem com o cabelo muito comprido atrás, todo emaranhado, muito oleoso. Vêm outros homens com ele e eu tenho nojo. O homem sobe as escadas na minha direcção, mas à medida que sobe as escadas percebo que tem um rosto claro e bom, emoldurado pelas farripas brancas do seu cabelo de artista. Agora sei que é uma sorte conhecê-lo, porque é raríssimo encontrarmos artistas que, para além de perceberem estas técnicas, ainda por cima são os autores dos trabalhos.
Ele é do Porto. Eu estou maravilhada a olhar para aqueles azulejos de flores e ramos, mas ele diz-me que são muito fáceis de fazer, e que não têm nada de especial, e que ainda não vi o mais importante. Mostra à minha direita, no patamar que leva ao último andar, azulejos que são paisagens do vinho do Porto, coisas mais ou menos abstractas. O homem diz:
“Isto é que é um bom trabalho.”
Mais acima, há um nicho na parede, e nesse nicho está uma instalação em xisto. As pedras, negras, estão colocadas de tal forma que parecem sugerir o corpo de Cristo. O nicho está parcialmente coberto, na superfície da parede, com uma rede de galinheiro, esburacada. O homem diz:
“Estas pedras são raras.”
Fico espantada, porque aquela obra é de uma grande contemporaneidade. E penso, de repente, nos trabalhos que queria fazer e que têm a ver com aquelas formas que o homem me está a mostrar.
É uma terra estrangeira e familiar, um local de trabalho onde me sinto como se estivesse de férias, porque tem uma luz lindíssima, como se fosse de Verão. Faz-me lembrar a luz do Alentejo. E é muito quente. Estão a construir uma rampa que eu costumava subir e que era muito íngreme. Agora, há máquinas a nivelar o piso. Nivelam o piso esmagando todos os carros ali estacionados, e espalhando depois terra e brita por cima deles. Vejo as máquinas a calcarem os carros, e a tapá-los com terra, e a aplanar o caminho, e eu ando à procura de casa, só que já tenho casa. E é uma casa que partilho com um amigo meu, que é estrangeiro, e temos dois filhos que são dele.
Nós vamos casar. Agora os filhos dele são, também, meus.
Entretanto começamos a dançar. Fico espantada, não sabia que ele sabia dançar. E ele fica espantado: não sabia, também, que eu dançava. E à medida que vamos dançando é como se eu adivinhasse os passos dele, que são lentos e muito elaborados, e não é nenhuma dança que eu tivesse conhecido antes, ou que alguma vez tivesse aprendido. E é como se fosse uma respiração, e é deslumbrantemente bom.
E depois há uma festa de trabalho. A essa festa vêm japoneses, porque há associações que vão ser levadas acabo, e o meu trabalho tem a ver com isso. Parece que vou ser apresentada a umas pessoas, e é por isso que me pediram para lá estar. E entretanto vamos conversando uns com os outros, e apresentam-nos a umas pessoas, entre as quais se encontram crianças prodígios. São crianças horrorosas, como as que vi (ontem) num programa de televisão.
Essas crianças desaparecem de seguida.
Subo umas escadas e estou no último andar do prédio onde vou viver, e há muita luz que se derrama pela clarabóia do tecto. Do patamar onde me encontro as escadas têm azulejos arte-nova, muito bonitos, mas alguns estão estragados. A senhoria, que está comigo, diz:
“E preciso mandar arranjar estes azulejos”.
Pergunto:
“Onde posso encontrar quem conheça ainda esta técnica?”
Ela diz que é muito fácil. Acontece que no mesmo prédio onde estamos, exactamente no andar debaixo do meu, há um homem que ainda trabalha nisso. “É um artista, um mestre”, diz ela. E chama por ele.
O homem sai de casa. A casa dele fica mesmo por baixo, à direita. É um homem com o cabelo muito comprido atrás, todo emaranhado, muito oleoso. Vêm outros homens com ele e eu tenho nojo. O homem sobe as escadas na minha direcção, mas à medida que sobe as escadas percebo que tem um rosto claro e bom, emoldurado pelas farripas brancas do seu cabelo de artista. Agora sei que é uma sorte conhecê-lo, porque é raríssimo encontrarmos artistas que, para além de perceberem estas técnicas, ainda por cima são os autores dos trabalhos.
Ele é do Porto. Eu estou maravilhada a olhar para aqueles azulejos de flores e ramos, mas ele diz-me que são muito fáceis de fazer, e que não têm nada de especial, e que ainda não vi o mais importante. Mostra à minha direita, no patamar que leva ao último andar, azulejos que são paisagens do vinho do Porto, coisas mais ou menos abstractas. O homem diz:
“Isto é que é um bom trabalho.”
Mais acima, há um nicho na parede, e nesse nicho está uma instalação em xisto. As pedras, negras, estão colocadas de tal forma que parecem sugerir o corpo de Cristo. O nicho está parcialmente coberto, na superfície da parede, com uma rede de galinheiro, esburacada. O homem diz:
“Estas pedras são raras.”
Fico espantada, porque aquela obra é de uma grande contemporaneidade. E penso, de repente, nos trabalhos que queria fazer e que têm a ver com aquelas formas que o homem me está a mostrar.
segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010
Eu estou no mato. Eu conheço África.
Noite de 5 para 6 de Junho de 1999
Volto para aquela terra onde vivi, há muitos anos. [...] Eu vou trabalhar para lá mas sinto-me desterrada. E há perigos. Dentro da minha casa fecho as portas e as janelas, mas é tudo um pouco provisório.
Há uma mulher e um homem. Eles são ameaçadores. Eu vou à Pousada com a mulher, porque quero convencê-la de que não desconfio de nada, para lhe fazer baixa a guarda. À entrada da Pousada está a Alexandra, sózinha. Entramos, e vamos para uma sala ao fundo. Julgo que convenci a mulher da minha ingenuidade, e fico satisfeita. Contudo, penso que é melhor fugir o quanto antes daquele lugar.
Reparo que não trouxe a carteira, mas já não é possível voltar atrás, para ir buscá-la. Agora a Alexandra não está na entrada. E eu não sei como avisá-la.
Percebo que é urgente fugir.
Saio e vejo no alto de umas escadas, homens emboscados que me querem matar. Um deles dispara um tiro na minha direcção. Não me acerta, mas as balas ricocheteiam na parede. Fujo, descendo uma rampa que dá para uma oficina. É uma oficina de um país africano, está cheia de carros, a maior parte deles muito velhos. Para saírem da oficina têm que receber uma ordem. Essa ordem é dada por uma senha que um senhor negro, idoso, tem, chamando os carros pelos números.
Eu sei que em África toda a gente apanha boleia de toda a gente. Mas o dono do carro que já pode sair não aparece. É um mini, mesmo minúsculo. Continuo a andar pela garagem. Agora tenho os homens atrás de mim. Vejo um homem dentro de um carro conversível, pronto para arrancar. Esse homem sai por outra saída, não precisa de senha. O carro é muito velho. Meto-me lá dentro e digo-lhe que me leve dali para fora. Ele arranca a fazer barulho com as rodas. Guia muito bem. Eu acho que ele participou em ralis. Mais à frente, já no mato, pergunta-me para onde vou. Conto-lhe estou a ser perseguida por um gang que me quer matar. Ele precisa de me esconder, ainda sou muito visível.
Ele fica branco de medo. A cara treme-lhe. Diz:
«Eu sou a pessoa que devia agredi-la. Eu ajudei o grupo contra si, não sabia quem você era.»
.Mas agora eu estou no mato. Estou fora do alcance dos homens. Eu conheço África. Penso:
«Que estupidez a deles. Pensarem em caçar-me no único território onde me é tão fácil escapar.»
Imagem: Bushland in South Africa [http://www.flickr.com/photos/96203093@N00/300329158/]
Volto para aquela terra onde vivi, há muitos anos. [...] Eu vou trabalhar para lá mas sinto-me desterrada. E há perigos. Dentro da minha casa fecho as portas e as janelas, mas é tudo um pouco provisório.
Há uma mulher e um homem. Eles são ameaçadores. Eu vou à Pousada com a mulher, porque quero convencê-la de que não desconfio de nada, para lhe fazer baixa a guarda. À entrada da Pousada está a Alexandra, sózinha. Entramos, e vamos para uma sala ao fundo. Julgo que convenci a mulher da minha ingenuidade, e fico satisfeita. Contudo, penso que é melhor fugir o quanto antes daquele lugar.
Reparo que não trouxe a carteira, mas já não é possível voltar atrás, para ir buscá-la. Agora a Alexandra não está na entrada. E eu não sei como avisá-la.
Percebo que é urgente fugir.
Saio e vejo no alto de umas escadas, homens emboscados que me querem matar. Um deles dispara um tiro na minha direcção. Não me acerta, mas as balas ricocheteiam na parede. Fujo, descendo uma rampa que dá para uma oficina. É uma oficina de um país africano, está cheia de carros, a maior parte deles muito velhos. Para saírem da oficina têm que receber uma ordem. Essa ordem é dada por uma senha que um senhor negro, idoso, tem, chamando os carros pelos números.
Eu sei que em África toda a gente apanha boleia de toda a gente. Mas o dono do carro que já pode sair não aparece. É um mini, mesmo minúsculo. Continuo a andar pela garagem. Agora tenho os homens atrás de mim. Vejo um homem dentro de um carro conversível, pronto para arrancar. Esse homem sai por outra saída, não precisa de senha. O carro é muito velho. Meto-me lá dentro e digo-lhe que me leve dali para fora. Ele arranca a fazer barulho com as rodas. Guia muito bem. Eu acho que ele participou em ralis. Mais à frente, já no mato, pergunta-me para onde vou. Conto-lhe estou a ser perseguida por um gang que me quer matar. Ele precisa de me esconder, ainda sou muito visível.
Ele fica branco de medo. A cara treme-lhe. Diz:
«Eu sou a pessoa que devia agredi-la. Eu ajudei o grupo contra si, não sabia quem você era.»
.Mas agora eu estou no mato. Estou fora do alcance dos homens. Eu conheço África. Penso:
«Que estupidez a deles. Pensarem em caçar-me no único território onde me é tão fácil escapar.»
Imagem: Bushland in South Africa [http://www.flickr.com/photos/96203093@N00/300329158/]
O marido da Gigi é velho e atira-me um sapato
Noite de 15 para 16 de Maio de 1999
Estamos no restaurante da Gigi. Ela está muito ocupada, tão ocupada que não consigo falar com ela. Vejo-a no meio de um grupo de mulheres que preparam petiscos. Depois aproximo-me e já não a vejo. As mulheres dizem-me que ela já saiu.
Tenho algumas carteiras minhas que fiquei de levar, e quero aproveitar agora que estou ali. Mas entretanto não as consigo reunir, e o carro não está perto. Sei que o Otto anda ali, e deve estar a chegar. E vejo a Susana, passo por ela e falo-lhe. Ela está a brincar com uma criança. É uma menina e é filha da Gigi. Digo:
«Olá, Susana», e sigo. Então entro em casa da Gigi pelas traseiras, e a porta estou aberta, e vou dar a um quarto, e o quarto está muito escuro, e dentro do quarto está um homem a dormir. Esse homem é velho. É o marido da Gigi, e fica tão mal disposto que me atira um sapato e eu saio.
Estamos no restaurante da Gigi. Ela está muito ocupada, tão ocupada que não consigo falar com ela. Vejo-a no meio de um grupo de mulheres que preparam petiscos. Depois aproximo-me e já não a vejo. As mulheres dizem-me que ela já saiu.
Tenho algumas carteiras minhas que fiquei de levar, e quero aproveitar agora que estou ali. Mas entretanto não as consigo reunir, e o carro não está perto. Sei que o Otto anda ali, e deve estar a chegar. E vejo a Susana, passo por ela e falo-lhe. Ela está a brincar com uma criança. É uma menina e é filha da Gigi. Digo:
«Olá, Susana», e sigo. Então entro em casa da Gigi pelas traseiras, e a porta estou aberta, e vou dar a um quarto, e o quarto está muito escuro, e dentro do quarto está um homem a dormir. Esse homem é velho. É o marido da Gigi, e fica tão mal disposto que me atira um sapato e eu saio.
«Porque é que para as mulheres é tudo tão mais difícil, sempre?»
Noite de 29 para 30 de Abril de 1999
Subo as escadas estreitas da oficina. São umas escadas que cortam o tecto, em traves de madeira, e entro para uma espécie de sótão, bem amplo e muito iluminado pela luz do dia. É uma oficina. Naquela oficina trabalham crianças. É uma oficina de trabalho infantil. Um dos rapazes com quem falo tem 12 anos. A pele dele é clara. Tem manchas na pele.
Sei que me deixaram entrar ali porque estou com Otto, e ele tem negócios com o dono daquele sítio. Porém ele não sabe que ali trabalham crianças.
Espalhados pelo chão estão artefactos de madeira, coisas semi-esculpidas. Não é escultura. Talvez artesanato, num sentido mais tradicional. Acho que algumas peças são experiências. Acho que aqueles miúdos gostam de estar ali. É um sítio alegre. Penso: «é melhor do que andarem na rua, sem saber o que fazer, ou a drogarem-se.»
Porque aquelas crianças encontram ali um destino e um caminho, é isso que eu acho. Acho também que ninguém sonha quem eu sou. Se soubessem a minha profissão nem me teriam deixado entrar. E muito menos andar tão à vontade por todo o lado.
Depois nós vamos viajar, mas eu tenho de ir à casa de banho. Estamos no aeroporto mas é uma construção estranha. Vou à casa de banho, empurro a porta e é a parte dos homens e tem um homem lá dentro. Saio e vejo a porta da casa de banho das mulheres. Empurro a porta e vejo uma rampa incrivelmente inclinada. Como estou de saltos altos, digo:
«Porque é que para as mulheres é tudo tão mais difícil, sempre?»
Desço a rampa com muito cuidado e penso: «depois vai ser ainda mais difícil de subir de volta aquela rampa tão íngreme». E penso também que para mulheres com filhos pequenos ainda será mais difícil.
Saio e olho para o relógio. São dez e meia. O avião era ás 10 horas, mas não ouvi a chamada de embarque. O Otto já foi, e não sei como encontrá-lo. Porém tenho alguma esperança que o avião se tenha atrasado, mas acho que isso é ser demasiado optimista. Meia hora é muito tempo para um avião se atrasar. Penso:
«Se telefonar a dizer que há uma bomba a bordo, não deixam o avião levantar voo.»
Mas penso também: «se fizer isto nunca mais na minha vida posso ligar para a TAP, porque vão ficar com o registo da minha voz e mais tarde ou mais cedo apanham-me.»
Depois penso que deve ser para apanhar os aviões que as pessoas atrasadas telefonam a dizer que há bombas.
Agora estou na pista do aeroporto, dentro de um carrinho com bagagens, e vejo, ao longe, a carrinha de bagagens onde estão Otto e little James, mas acho que já não vou conseguir apanhá-los, nem eles me conseguem ouvir. Mas por uma manobra incrível, em semi-círculo, o meu condutor acaba por me colocar exactamente atrás deles, o nosso carro colado ao carro deles, e eu passo para a li, e abraço-me ao Otto e digo:
«Olha, nunca pensei que conseguia.»
Subo as escadas estreitas da oficina. São umas escadas que cortam o tecto, em traves de madeira, e entro para uma espécie de sótão, bem amplo e muito iluminado pela luz do dia. É uma oficina. Naquela oficina trabalham crianças. É uma oficina de trabalho infantil. Um dos rapazes com quem falo tem 12 anos. A pele dele é clara. Tem manchas na pele.
Sei que me deixaram entrar ali porque estou com Otto, e ele tem negócios com o dono daquele sítio. Porém ele não sabe que ali trabalham crianças.
Espalhados pelo chão estão artefactos de madeira, coisas semi-esculpidas. Não é escultura. Talvez artesanato, num sentido mais tradicional. Acho que algumas peças são experiências. Acho que aqueles miúdos gostam de estar ali. É um sítio alegre. Penso: «é melhor do que andarem na rua, sem saber o que fazer, ou a drogarem-se.»
Porque aquelas crianças encontram ali um destino e um caminho, é isso que eu acho. Acho também que ninguém sonha quem eu sou. Se soubessem a minha profissão nem me teriam deixado entrar. E muito menos andar tão à vontade por todo o lado.
Depois nós vamos viajar, mas eu tenho de ir à casa de banho. Estamos no aeroporto mas é uma construção estranha. Vou à casa de banho, empurro a porta e é a parte dos homens e tem um homem lá dentro. Saio e vejo a porta da casa de banho das mulheres. Empurro a porta e vejo uma rampa incrivelmente inclinada. Como estou de saltos altos, digo:
«Porque é que para as mulheres é tudo tão mais difícil, sempre?»
Desço a rampa com muito cuidado e penso: «depois vai ser ainda mais difícil de subir de volta aquela rampa tão íngreme». E penso também que para mulheres com filhos pequenos ainda será mais difícil.
Saio e olho para o relógio. São dez e meia. O avião era ás 10 horas, mas não ouvi a chamada de embarque. O Otto já foi, e não sei como encontrá-lo. Porém tenho alguma esperança que o avião se tenha atrasado, mas acho que isso é ser demasiado optimista. Meia hora é muito tempo para um avião se atrasar. Penso:
«Se telefonar a dizer que há uma bomba a bordo, não deixam o avião levantar voo.»
Mas penso também: «se fizer isto nunca mais na minha vida posso ligar para a TAP, porque vão ficar com o registo da minha voz e mais tarde ou mais cedo apanham-me.»
Depois penso que deve ser para apanhar os aviões que as pessoas atrasadas telefonam a dizer que há bombas.
Agora estou na pista do aeroporto, dentro de um carrinho com bagagens, e vejo, ao longe, a carrinha de bagagens onde estão Otto e little James, mas acho que já não vou conseguir apanhá-los, nem eles me conseguem ouvir. Mas por uma manobra incrível, em semi-círculo, o meu condutor acaba por me colocar exactamente atrás deles, o nosso carro colado ao carro deles, e eu passo para a li, e abraço-me ao Otto e digo:
«Olha, nunca pensei que conseguia.»
Foi só sexo
Noite de 17 para 18 de Abril de 1999
Quero ir a uma casa de banho. Na rua há uma placa, no primeiro andar, de um restaurante. Tem um letreiro a dizer: “aqui há tubarão”. Digo ao Otto: “vou ao restaurante para ir à casa de banho.” Subo as escadas Lá em cima os empregados estão a acabar de arrumar as salas. Não há ainda nenhuns clientes. Peço a um dos empregados que me mostre a lista ou que me dê uma cópia para eu “levar ao meu marido”. Eles mostram-me uma ementa encadernada, mas eu insisto que é para levar, basta-me uma cópia. Na verdade é uma desculpa, para não entrar directamente para a casa de banho.
Dois empregados precipitam-se ao mesmo tempo para uma mesa e copiam os dois, num caderno, a ementa. Eu digo:
“Não é preciso a ementa toda, basta alguns dos pratos principais”.
Avanço para a casa de banho, entro e percebo que as portas são apenas cortinados, e que há homens lá dentro a acabar as arrumações. Fico frustrada e saio. Vejo outra porta. É outra casa de banho. Lá dentro, sentado a uma mesa baixa e virado para a entrada, está um homem com um ar cansado, aborrecido. É um homem de 60 aos. Ele cobra a entrada para a casa de banho. Eu penso:
“Que tolice. Perdi tempo, quando afinal aqui, por uma moeda, nem precisava de fazer conversa.”
Dou uma moeda ao homem, que me dá a minha ficha, entro por uma porta e percebo que, afinal, acabei por sair e estou na rua.
Digo ao Otto:
“Que maçada. Nem trouxe a ementa, nem fiz chichi.”
E depois estamos numa ponte, e sobre a ponte há muita gente, em grupos. Há um grupo de raparigas novas que eu não conhecia, mas com quem estabelecemos logo uma certa cumplicidade. No meio de nós há uma fogueira. O Otto brinca com todas elas, e mete-se especialmente com uma, que nem sequer é a mais bonita, mas que lhe dá imenso troco. Ele diz:
“Vamos até ali atrás das muralhas”
E ela diz:
“Já.”
Saem os dois abraços, e eu e as outras raparigas continuamos a conversar e a rir. Uma delas pergunta:
“Não te fazer impressão ele sair, à tua frente, com outra? Essas coisas não te afectam?”
E respondo:
“Oh, não! Tenho absoluta confiança nele. Foram só dar uma volta.”
Eu estou tranquila, e quando eles chegam pergunto:
“Então? O que foram fazer?”
E ele responde:
“Foi só sexo.”
Fico tão espantada que julgo que ele está a brincar. Insisto e ele volta a dar a mesma resposta. Eu digo:
“Assim temos que acabar imediatamente esta história. É impensável uma relação nestes termos.”
Estou atordoada. Ele olha-me, incrédulo:
“Não percebes? Foi só sexo. É uma estupidez acabar uma relação por causa de uma coisa dessas.”
Imagem: dezeen [http://www.dezeen.com/2008/11/27/inamo-restaurant-by-blacksheep/]
Quero ir a uma casa de banho. Na rua há uma placa, no primeiro andar, de um restaurante. Tem um letreiro a dizer: “aqui há tubarão”. Digo ao Otto: “vou ao restaurante para ir à casa de banho.” Subo as escadas Lá em cima os empregados estão a acabar de arrumar as salas. Não há ainda nenhuns clientes. Peço a um dos empregados que me mostre a lista ou que me dê uma cópia para eu “levar ao meu marido”. Eles mostram-me uma ementa encadernada, mas eu insisto que é para levar, basta-me uma cópia. Na verdade é uma desculpa, para não entrar directamente para a casa de banho.
Dois empregados precipitam-se ao mesmo tempo para uma mesa e copiam os dois, num caderno, a ementa. Eu digo:
“Não é preciso a ementa toda, basta alguns dos pratos principais”.
Avanço para a casa de banho, entro e percebo que as portas são apenas cortinados, e que há homens lá dentro a acabar as arrumações. Fico frustrada e saio. Vejo outra porta. É outra casa de banho. Lá dentro, sentado a uma mesa baixa e virado para a entrada, está um homem com um ar cansado, aborrecido. É um homem de 60 aos. Ele cobra a entrada para a casa de banho. Eu penso:
“Que tolice. Perdi tempo, quando afinal aqui, por uma moeda, nem precisava de fazer conversa.”
Dou uma moeda ao homem, que me dá a minha ficha, entro por uma porta e percebo que, afinal, acabei por sair e estou na rua.
Digo ao Otto:
“Que maçada. Nem trouxe a ementa, nem fiz chichi.”
E depois estamos numa ponte, e sobre a ponte há muita gente, em grupos. Há um grupo de raparigas novas que eu não conhecia, mas com quem estabelecemos logo uma certa cumplicidade. No meio de nós há uma fogueira. O Otto brinca com todas elas, e mete-se especialmente com uma, que nem sequer é a mais bonita, mas que lhe dá imenso troco. Ele diz:
“Vamos até ali atrás das muralhas”
E ela diz:
“Já.”
Saem os dois abraços, e eu e as outras raparigas continuamos a conversar e a rir. Uma delas pergunta:
“Não te fazer impressão ele sair, à tua frente, com outra? Essas coisas não te afectam?”
E respondo:
“Oh, não! Tenho absoluta confiança nele. Foram só dar uma volta.”
Eu estou tranquila, e quando eles chegam pergunto:
“Então? O que foram fazer?”
E ele responde:
“Foi só sexo.”
Fico tão espantada que julgo que ele está a brincar. Insisto e ele volta a dar a mesma resposta. Eu digo:
“Assim temos que acabar imediatamente esta história. É impensável uma relação nestes termos.”
Estou atordoada. Ele olha-me, incrédulo:
“Não percebes? Foi só sexo. É uma estupidez acabar uma relação por causa de uma coisa dessas.”
Imagem: dezeen [http://www.dezeen.com/2008/11/27/inamo-restaurant-by-blacksheep/]
As pessoas alegres saem da missa do Galo mas o bebé está sózinho
Noite de 6 para 7 de Abril de 1999 Cruzo-me com todas aquelas pessoas que vêm da direcção para onde eu caminho agora. Elas acabam de sair da Missa do Galo. Fico contente porque enchem, inesperadamente, a noite, tornando-a absolutamente segura. Penso:
“Se não fosse assim, as ruas estariam desertas e eu ia por aqui sozinha”.
As pessoas vão em grupos animados. Algumas estão bem vestidas. Riem e conversam. Abro caminho através delas porque vou para casa do meu pai. Atravesso o jardim, e vejo, através do vidro da porta, a minha mãe. Ela faz-me sinal com as mãos, o rosto fechado e duro, e diz, dessa forma inequívoca:
“Vai-te embora, dorme na rua, fica onde quiseres, aqui não voltas.”
Mas eu preciso de entrar. E sei que para entrar tenho que inventar uma mentira, e dizer o que não penso.
Então digo que vim da Missa do Galo e que só preciso de ir buscar algumas coisas, embora saiba que não tenho coisas nenhumas para trazer daquela casa.
Finalmente é assim que venço a sua resistência. Ela abre a porta e eu entro para o hall. A certa altura estou a fazer-lhe perguntas sobre a minha infância. Eu quero saber o que aconteceu. Ela diz que não aconteceu nada. Falo de um sonho que tive há uns anos, com um berço onde está um bebé. Esse bebé está horrivelmente sozinho. Sei que esse bebé sou eu acordei com avassaladora vontade de chorar. Ela está nervosa. Diz que isso não é possível. Pergunto-lhe:
“Vocês fizeram-me o quê?”
Porque apesar de ela dizer que nós éramos felizes e muito bem tratados, eu sei que isso não é verdade, porque aquele bebé do meu outro sonho está abandonado num quarto enorme.
“Se não fosse assim, as ruas estariam desertas e eu ia por aqui sozinha”.
As pessoas vão em grupos animados. Algumas estão bem vestidas. Riem e conversam. Abro caminho através delas porque vou para casa do meu pai. Atravesso o jardim, e vejo, através do vidro da porta, a minha mãe. Ela faz-me sinal com as mãos, o rosto fechado e duro, e diz, dessa forma inequívoca:
“Vai-te embora, dorme na rua, fica onde quiseres, aqui não voltas.”
Mas eu preciso de entrar. E sei que para entrar tenho que inventar uma mentira, e dizer o que não penso.
Então digo que vim da Missa do Galo e que só preciso de ir buscar algumas coisas, embora saiba que não tenho coisas nenhumas para trazer daquela casa.
Finalmente é assim que venço a sua resistência. Ela abre a porta e eu entro para o hall. A certa altura estou a fazer-lhe perguntas sobre a minha infância. Eu quero saber o que aconteceu. Ela diz que não aconteceu nada. Falo de um sonho que tive há uns anos, com um berço onde está um bebé. Esse bebé está horrivelmente sozinho. Sei que esse bebé sou eu acordei com avassaladora vontade de chorar. Ela está nervosa. Diz que isso não é possível. Pergunto-lhe:
“Vocês fizeram-me o quê?”
Porque apesar de ela dizer que nós éramos felizes e muito bem tratados, eu sei que isso não é verdade, porque aquele bebé do meu outro sonho está abandonado num quarto enorme.
segunda-feira, 11 de janeiro de 2010
Eu, o padre, o amigo dele e o diabo
Noite de 5 para 6 de Abril de 1999
Uma casa no campo. É uma casa muito grande, com muitas salas e muitos quartos. É a casa do padre da aldeia, mas também é a minha casa. Pelo menos temporariamente, vou ficar ali a viver. O padre vai à frente, para mostrar tudo. Na sua configuração a casa recorda-me um pouco casas na América Latina ou na Andaluzia, fechadas sobre a rua e abertas, por dentro, para pátios amplos, com jardins, como claustros. Assim as janelas dos quartos que dão para a rua estão no alto das paredes, e são pequenas e estreitas, enquanto que, e para o grande pátio interior, as portas rasgam-se de uma maneira ampla.
Por outro lado aquela construção também me recorda uma antiga escola primária.
A mobília é antiga e modesta, como nas casas de quintas. No entanto, parece-me ver, aqui e além, coisas de valor, ou pelos menos objectos a que eu ficaria facilmente ligada. Há também crucifixos, na parede. Um deles parece-me muito bonito.
O padre é meu amigo. É um rapaz novo. Vou andando com ele pela casa, e connosco vai outro homem, também novo. Às vezes, eu o padre ficamos de mãos agarradas e não nos queremos largar. Há uma cumplicidade amorosa entre nós. O padre entretanto diz que temos que nos despachar porque só podemos ver a casa com a luz do dia, uma vez que não há electricidade. Ou se havia, o gerador foi desligado. E agora as sombras vão caindo e eu não tenho a certeza de que vamos conseguir ver a casa toda.
Não me lembro porque estou ali.
Chegamos a um quarto pequeno, com uma cama de solteiro baixa, em madeira. Parece que vai ser ali o quarto da minha mãe, porque foi aquele que ela escolheu. Voltamos para trás pelo mesmo caminho, só que é outro. Passamos por um quarto e eu olho lá para dentro e vejo, sobre uma cama encostada à parede, um diabo em tamanho natural. É um boneco, claro, de cara muito pintada, com um fato preto até aos pés, e corninhos de diabo, e nariz curvado de diabo. Penso que é utilizado nas procissões. Perto há uma cara sobressalente. O diabo/boneco tem um ar triste. Continuamos a andar, mas eu fico perturbada. E penso:
“Mas que ideia, um boneco destes na casa de um padre”.
Mesmo como adereço religioso (para as procissões ou teatros) faz-me impressão que ele ali estivesse. E deu-me algum medo, quando olhei para dentro do quarto e o vi. O quarto estava iluminado com luz eléctrica.
O padre e eu temos um caso, ou estamos na iminência de isso acontecer. E penso que com o amigo dele também (embora neste momento e a recordar-me, parece-me que eram os dois a mesma pessoa).
Agora estou a passar por um corredor estreito, que está completamente cheio de pessoas. As pessoas estão numa festa. Há música e há pares a dançarem, no apertado corredor. Empurro-os para sair.
Eu vou sair para um espaço mais amplo.
Uma casa no campo. É uma casa muito grande, com muitas salas e muitos quartos. É a casa do padre da aldeia, mas também é a minha casa. Pelo menos temporariamente, vou ficar ali a viver. O padre vai à frente, para mostrar tudo. Na sua configuração a casa recorda-me um pouco casas na América Latina ou na Andaluzia, fechadas sobre a rua e abertas, por dentro, para pátios amplos, com jardins, como claustros. Assim as janelas dos quartos que dão para a rua estão no alto das paredes, e são pequenas e estreitas, enquanto que, e para o grande pátio interior, as portas rasgam-se de uma maneira ampla.
Por outro lado aquela construção também me recorda uma antiga escola primária.
A mobília é antiga e modesta, como nas casas de quintas. No entanto, parece-me ver, aqui e além, coisas de valor, ou pelos menos objectos a que eu ficaria facilmente ligada. Há também crucifixos, na parede. Um deles parece-me muito bonito.
O padre é meu amigo. É um rapaz novo. Vou andando com ele pela casa, e connosco vai outro homem, também novo. Às vezes, eu o padre ficamos de mãos agarradas e não nos queremos largar. Há uma cumplicidade amorosa entre nós. O padre entretanto diz que temos que nos despachar porque só podemos ver a casa com a luz do dia, uma vez que não há electricidade. Ou se havia, o gerador foi desligado. E agora as sombras vão caindo e eu não tenho a certeza de que vamos conseguir ver a casa toda.
Não me lembro porque estou ali.
Chegamos a um quarto pequeno, com uma cama de solteiro baixa, em madeira. Parece que vai ser ali o quarto da minha mãe, porque foi aquele que ela escolheu. Voltamos para trás pelo mesmo caminho, só que é outro. Passamos por um quarto e eu olho lá para dentro e vejo, sobre uma cama encostada à parede, um diabo em tamanho natural. É um boneco, claro, de cara muito pintada, com um fato preto até aos pés, e corninhos de diabo, e nariz curvado de diabo. Penso que é utilizado nas procissões. Perto há uma cara sobressalente. O diabo/boneco tem um ar triste. Continuamos a andar, mas eu fico perturbada. E penso:
“Mas que ideia, um boneco destes na casa de um padre”.
Mesmo como adereço religioso (para as procissões ou teatros) faz-me impressão que ele ali estivesse. E deu-me algum medo, quando olhei para dentro do quarto e o vi. O quarto estava iluminado com luz eléctrica.
O padre e eu temos um caso, ou estamos na iminência de isso acontecer. E penso que com o amigo dele também (embora neste momento e a recordar-me, parece-me que eram os dois a mesma pessoa).
Agora estou a passar por um corredor estreito, que está completamente cheio de pessoas. As pessoas estão numa festa. Há música e há pares a dançarem, no apertado corredor. Empurro-os para sair.
Eu vou sair para um espaço mais amplo.
Hare krishna people
Noite de 30 para 21 de Março de 1999
Estamos todos a entrar para um carro. É um volkswagen. Somos muitos. Estamos em Lisboa, no Príncipe Real. Uma das pessoas traz um bebé muito pequeno. Pergunto-lhe se o bebé tem dois meses. Ela responde:
“Tem um ano”.
Fico envergonhada porque ter dito que o filho dela é tão pequeno. Finalmente, e depois de muitas mudanças de planos, fica resolvido que vou eu a guiar.
O carro tem quatro portas.
Entro para o meu lugar, mas não é tão fácil como parecia pô-lo a trabalhar e depois em marcha. Finalmente consigo levá-lo até ao Príncipe Real. Curiosamente, o percurso que fazemos foi quase para o mesmo sítio, só que ligeiramente mais à frente. Entretanto chegamos diante do antigo palácio dos amigos nossos, e eu tento parar o carro. Mas o carro não pára. Eu simplesmente não consigo pôr o pé no travão. Não é possível. Felizmente vamos muito devagar, e então meto o carro na garagem do palácio.
É muito ampla e tem lá alguns carros guardados. Carros muito bons. Saio do wolkswagen mas tenho de lhe pôr uns calços para ele parar. Só que agora já não é um carro, assim como os outros todos, porque perdeu a sua estrutura de carro.
Actualmente, como verificamos, o palácio ainda pertence a alguns remotos amigos de amigos nossos, que pertencem, por sua vez, a uma seita oriental, tipo Hare Krishna. As pessoas usam túnicas, compridas, de cores, e os rapazes têm a cabeça rapada e pinturas no rosto. E eu digo:
“Agora já percebo de onde eles saem” porque me recordo de pensar ao vê-los na rua a distribuir folhetos, quando estou acordada:
“Onde é que eles viverão?”
Mas estas pessoas são incrivelmente snobs. Uma rapariga passa por nós, com rolos de tecido nos braços para colocá-los sobre uma mesa, à entrada, e mal responde a uma pergunta nossa. Os tecidos são maravilhosos. E eu digo a uma amiga minha que esteve ligada a um desses cultos:
“Parece-me que com estas atitudes, estas pessoas não deixam a energia fluir e não se libertam. Assim, tudo isto é tão inútil”.
E ela responde:
“Pois é" e utiliza uma expressão em sânscrito, (no sonho eu sei que é sânscrito) e que quer dizer “o fluir de Bramhan”.
Entretanto começa a chegar muita gente que enche o átrio onde estamos. Todas as pessoas pertencem àquela irmandade, menos nós. Vai celebrar-se um casamento. Vemos sair, por uma porta interior, os noivos e o sacerdote.
Reconheço os noivos: tinham passado por nós, muito depressa, no carro deles, quando estávamos na estrada. Não são novos, mas também não são velhos. Têm 40 e tal anos e são um pouco gordos. Estão profundamente felizes os dois.
Curiosamente, a sua maquilhagem - estão ambos pintados - é feita de cobertura de açúcar, como nos bolos. Quer dizer, eles estão pintados com os mesmo produtos que se utilizam na culinária. Uma pasta de açúcar, muito branca, com cores de bolo de anos cobre-lhes a cara. Espalha-se na boca, nas maçãs do rosto e nas pálpebras.O sacerdote que os vai casar também está assim, só que as cores dele são sobre o escuro. No nariz tem um adorno que é uma espécie de bico.
É muito estranho.
Entretanto há muitos doces, que vão ser distribuídos pelas pessoas. Percebo que o sacerdote diz qualquer coisa em voz baixa enquanto olha na nossa direcção. E eu digo à minha amiga:
“Uma vez que não pertencemos a esta seita, nem fomos convidados para o casamento, não podemos aceitar nenhum bolo, porque seria indelicado.”
E todos concordaram comigo.
Um rapaz muito alto, de túnica cor de açafrão, chega junto de nós com uma bandeja cheia de bolos, de uma cor deliciosamente amarela. A minha amiga diz que não pode aceitar. Não me recordo das palavras, mas fá-lo de uma forma muito rude, mesmo ofensiva. O rapaz fica perplexo. Eu digo-lhe:
«Quer ouvir a verdadeira razão?”
Ele já se vai embora, ofendido, mas pára. Explico-lhe e ele sorri:
“Esse é um motivo válido, e se posso exprimir-me assim, elegante. A sua amiga põe as coisas de uma forma muito grosseira.
E agora estamos todos na cozinha da minha casa a lavar a loiça da festa. É tanta. Quando chego, no entanto, já está quase toda lavada. Penso:
“O problema seguinte é o tempo que vai demorar a arrumar toda esta loiça”.
Mas o chefe das operações diz:
“Esteja à vontade. Se quiser ser você agora a lavar, dou-lhe a vez”.
E eu digo que não. Começo a juntar mais coisas, espalhadas, e reparo que ainda há muito para lavar. Peças soltas. Mas quando volto a olhar o lava-loiça está vazio, e tudo já foi arrumado.
Estamos todos a entrar para um carro. É um volkswagen. Somos muitos. Estamos em Lisboa, no Príncipe Real. Uma das pessoas traz um bebé muito pequeno. Pergunto-lhe se o bebé tem dois meses. Ela responde:
“Tem um ano”.
Fico envergonhada porque ter dito que o filho dela é tão pequeno. Finalmente, e depois de muitas mudanças de planos, fica resolvido que vou eu a guiar.
O carro tem quatro portas.
Entro para o meu lugar, mas não é tão fácil como parecia pô-lo a trabalhar e depois em marcha. Finalmente consigo levá-lo até ao Príncipe Real. Curiosamente, o percurso que fazemos foi quase para o mesmo sítio, só que ligeiramente mais à frente. Entretanto chegamos diante do antigo palácio dos amigos nossos, e eu tento parar o carro. Mas o carro não pára. Eu simplesmente não consigo pôr o pé no travão. Não é possível. Felizmente vamos muito devagar, e então meto o carro na garagem do palácio.
É muito ampla e tem lá alguns carros guardados. Carros muito bons. Saio do wolkswagen mas tenho de lhe pôr uns calços para ele parar. Só que agora já não é um carro, assim como os outros todos, porque perdeu a sua estrutura de carro.
Actualmente, como verificamos, o palácio ainda pertence a alguns remotos amigos de amigos nossos, que pertencem, por sua vez, a uma seita oriental, tipo Hare Krishna. As pessoas usam túnicas, compridas, de cores, e os rapazes têm a cabeça rapada e pinturas no rosto. E eu digo:
“Agora já percebo de onde eles saem” porque me recordo de pensar ao vê-los na rua a distribuir folhetos, quando estou acordada:
“Onde é que eles viverão?”
Mas estas pessoas são incrivelmente snobs. Uma rapariga passa por nós, com rolos de tecido nos braços para colocá-los sobre uma mesa, à entrada, e mal responde a uma pergunta nossa. Os tecidos são maravilhosos. E eu digo a uma amiga minha que esteve ligada a um desses cultos:
“Parece-me que com estas atitudes, estas pessoas não deixam a energia fluir e não se libertam. Assim, tudo isto é tão inútil”.
E ela responde:
“Pois é" e utiliza uma expressão em sânscrito, (no sonho eu sei que é sânscrito) e que quer dizer “o fluir de Bramhan”.
Entretanto começa a chegar muita gente que enche o átrio onde estamos. Todas as pessoas pertencem àquela irmandade, menos nós. Vai celebrar-se um casamento. Vemos sair, por uma porta interior, os noivos e o sacerdote.
Reconheço os noivos: tinham passado por nós, muito depressa, no carro deles, quando estávamos na estrada. Não são novos, mas também não são velhos. Têm 40 e tal anos e são um pouco gordos. Estão profundamente felizes os dois.
Curiosamente, a sua maquilhagem - estão ambos pintados - é feita de cobertura de açúcar, como nos bolos. Quer dizer, eles estão pintados com os mesmo produtos que se utilizam na culinária. Uma pasta de açúcar, muito branca, com cores de bolo de anos cobre-lhes a cara. Espalha-se na boca, nas maçãs do rosto e nas pálpebras.O sacerdote que os vai casar também está assim, só que as cores dele são sobre o escuro. No nariz tem um adorno que é uma espécie de bico.
É muito estranho.
Entretanto há muitos doces, que vão ser distribuídos pelas pessoas. Percebo que o sacerdote diz qualquer coisa em voz baixa enquanto olha na nossa direcção. E eu digo à minha amiga:
“Uma vez que não pertencemos a esta seita, nem fomos convidados para o casamento, não podemos aceitar nenhum bolo, porque seria indelicado.”
E todos concordaram comigo.
Um rapaz muito alto, de túnica cor de açafrão, chega junto de nós com uma bandeja cheia de bolos, de uma cor deliciosamente amarela. A minha amiga diz que não pode aceitar. Não me recordo das palavras, mas fá-lo de uma forma muito rude, mesmo ofensiva. O rapaz fica perplexo. Eu digo-lhe:
«Quer ouvir a verdadeira razão?”
Ele já se vai embora, ofendido, mas pára. Explico-lhe e ele sorri:
“Esse é um motivo válido, e se posso exprimir-me assim, elegante. A sua amiga põe as coisas de uma forma muito grosseira.
E agora estamos todos na cozinha da minha casa a lavar a loiça da festa. É tanta. Quando chego, no entanto, já está quase toda lavada. Penso:
“O problema seguinte é o tempo que vai demorar a arrumar toda esta loiça”.
Mas o chefe das operações diz:
“Esteja à vontade. Se quiser ser você agora a lavar, dou-lhe a vez”.
E eu digo que não. Começo a juntar mais coisas, espalhadas, e reparo que ainda há muito para lavar. Peças soltas. Mas quando volto a olhar o lava-loiça está vazio, e tudo já foi arrumado.
«Deixe-me ver a etiqueta do seu vestido.”
Noite de 27 para 28 de Março de 1999
O Luís vai dar uma aula. É uma aula ao ar livre e não é para médicos. Julgo que é uma aula para estudantes, ou candidatos a cursos de medicina. Parecem um grupo de excursionistas a passear por uma feira de cultura. Eu vou à frente do grupo e quero distanciar-me, mas não consigo, porque há muita gente atrás de mim e ao meu lado. Assim, a forma mais segura de caminhar é à frente do grupo, ligeiramente ao lado do Luís. E eu penso:
“Mas ele tem os pés tão pequenos”
E de repente ele fica tão bem disposto, mas tão bem disposto, que tudo aquilo se transforma numa brincadeira. [...]
Afasto-me.
E agora estou numa sala e para sair dessa sala é preciso passar por uma mulher que ocupa todo o espaço da passagem, porque está metida dentro de uma estrutura de carrinho de choque de feira popular. Está comigo uma amiga minha que conseguiu passar através das oscilações daquele carrinho com a mulher lá dentro. Eu já não consigo. Então fico na plataforma de borracha, a oscilar também de um lado para o outro, nas costas da mulher, até que ela me diz:
“Estou a ficar farta de tantas pessoas a tentarem passar-me à frente.”
E eu digo:
“Mas eu não tenho outra forma de sair daqui”.
E rio-me. E ela sabe que eu não me vou zangar, mas também não vou voltar as costas. Então diz:
“Está bem. Passe lá. Mas antes deixe-me ver a etiqueta do seu vestido.”
E eu tenho um vestido comprido, lindíssimo, preto, decotado nas costas, Max Mara. A mulher deixa-me passar por ela e depois agarra-me na etiqueta que estava nas costas do meu vestido, e lê, em voz alta e muito snob:
“Ah! Sthephen Kelian, logo vi. Só podia ser, é lindíssimo”.
E eu não digo nada, porque tanto faz, mas a etiqueta que ela refere é de sapatos italianos e não do meu vestido. A verdade é que o que eu quero mesmo é passar.
O Luís vai dar uma aula. É uma aula ao ar livre e não é para médicos. Julgo que é uma aula para estudantes, ou candidatos a cursos de medicina. Parecem um grupo de excursionistas a passear por uma feira de cultura. Eu vou à frente do grupo e quero distanciar-me, mas não consigo, porque há muita gente atrás de mim e ao meu lado. Assim, a forma mais segura de caminhar é à frente do grupo, ligeiramente ao lado do Luís. E eu penso:
“Mas ele tem os pés tão pequenos”
E de repente ele fica tão bem disposto, mas tão bem disposto, que tudo aquilo se transforma numa brincadeira. [...]
Afasto-me.
E agora estou numa sala e para sair dessa sala é preciso passar por uma mulher que ocupa todo o espaço da passagem, porque está metida dentro de uma estrutura de carrinho de choque de feira popular. Está comigo uma amiga minha que conseguiu passar através das oscilações daquele carrinho com a mulher lá dentro. Eu já não consigo. Então fico na plataforma de borracha, a oscilar também de um lado para o outro, nas costas da mulher, até que ela me diz:
“Estou a ficar farta de tantas pessoas a tentarem passar-me à frente.”
E eu digo:
“Mas eu não tenho outra forma de sair daqui”.
E rio-me. E ela sabe que eu não me vou zangar, mas também não vou voltar as costas. Então diz:
“Está bem. Passe lá. Mas antes deixe-me ver a etiqueta do seu vestido.”
E eu tenho um vestido comprido, lindíssimo, preto, decotado nas costas, Max Mara. A mulher deixa-me passar por ela e depois agarra-me na etiqueta que estava nas costas do meu vestido, e lê, em voz alta e muito snob:
“Ah! Sthephen Kelian, logo vi. Só podia ser, é lindíssimo”.
E eu não digo nada, porque tanto faz, mas a etiqueta que ela refere é de sapatos italianos e não do meu vestido. A verdade é que o que eu quero mesmo é passar.
segunda-feira, 4 de janeiro de 2010
«o amor é olhar alguém de frente, e não é fugir de ninguém”
Noite de 17 para 18 de Março de 99
Num campo aberto muitas pessoas estão a ver outras a fazer desportos radicais – o salto de elástico. Um dos homens que agora se lança no espaço é amigo do Zé. Deve ter à volta de 50 anos, usa o cabelo curto. O cabelo é branco metálico. O homem está em excelente forma física. Salta e chega quase ao chão, volta para cima e prolonga o salto por uma série de sequências. Numa das vezes é assustador, porque praticamente toca no chão. O chão é de terra batida. Mas, voltando para cima, ensaia e executa uma nova forma, agora preso apenas por um dos pés.
Ouve-se um frémito a percorrer a pequena multidão que assiste ao espectáculo. O recinto, ao ar livre, lembra um parque de diversões. As pessoas estão paradas a olhar para o homem que não para de subir e de descer, e de executar figuras cada vez mais complexas e geométricas.
O homem sabe que estamos ali. E eu penso:
“Será que ele se daria aquele trabalho todo se nós não estivéssemos aqui a olhar?”
E depois tenho que escrever sobre uma actriz conhecida em Portugal, que foi nomeada para os Óscares. Ficaram de me enviar o cartaz do filme, que é o único documento onde se pode obter uma fotografia dela. Estou numa espécie de enfermaria, que é um espaço multiusos. Ao fundo destas várias salas que comunicam, há um antigo soldado numa cama.
Eu quero falar com ele. Levo-lhe uma chávena de chá, aproximo-me da sua cama, sento-me ao lado dele e pergunto:
“Quer tomar chá comigo?”
E ele diz:
“Não”.
E eu fico aflita. E como não sou capaz de lhe responder, nem consigo dizer mais nada, pego na chávena e venho-me embora. Chego à minha secretária e em cima da minha secretária há um envelope enorme. Abro-o. Lá dentro está o cartaz com a fotografia da actriz.
E a Alexandra diz:
“Quando é que vais aprender que o amor é olhar alguém de frente, e não é fugir de ninguém?”
E eu não respondo porque estou a olhar para o poster, enorme, desconfortavelmente grande, e acondicionado como se fosse um documento muito importante: não posso dobrá-lo, nem danificá-lo porque é único. Contudo, não consigo descortinar ali a cara da actriz.
E estou perplexa, sem saber como resolver aquilo. Depois digo ao Zé:
“Não podes dobrar o cartaz”
Mas ele já o tinha guardado dentro da carteira dos documentos.
E depois, eu e o Zé passeamos juntos por uma cidade. Vamos de viagem para o Sul passando pelo Norte. É uma viagem rápida.
[...]
Num campo aberto muitas pessoas estão a ver outras a fazer desportos radicais – o salto de elástico. Um dos homens que agora se lança no espaço é amigo do Zé. Deve ter à volta de 50 anos, usa o cabelo curto. O cabelo é branco metálico. O homem está em excelente forma física. Salta e chega quase ao chão, volta para cima e prolonga o salto por uma série de sequências. Numa das vezes é assustador, porque praticamente toca no chão. O chão é de terra batida. Mas, voltando para cima, ensaia e executa uma nova forma, agora preso apenas por um dos pés.
Ouve-se um frémito a percorrer a pequena multidão que assiste ao espectáculo. O recinto, ao ar livre, lembra um parque de diversões. As pessoas estão paradas a olhar para o homem que não para de subir e de descer, e de executar figuras cada vez mais complexas e geométricas.
O homem sabe que estamos ali. E eu penso:
“Será que ele se daria aquele trabalho todo se nós não estivéssemos aqui a olhar?”
E depois tenho que escrever sobre uma actriz conhecida em Portugal, que foi nomeada para os Óscares. Ficaram de me enviar o cartaz do filme, que é o único documento onde se pode obter uma fotografia dela. Estou numa espécie de enfermaria, que é um espaço multiusos. Ao fundo destas várias salas que comunicam, há um antigo soldado numa cama.
Eu quero falar com ele. Levo-lhe uma chávena de chá, aproximo-me da sua cama, sento-me ao lado dele e pergunto:
“Quer tomar chá comigo?”
E ele diz:
“Não”.
E eu fico aflita. E como não sou capaz de lhe responder, nem consigo dizer mais nada, pego na chávena e venho-me embora. Chego à minha secretária e em cima da minha secretária há um envelope enorme. Abro-o. Lá dentro está o cartaz com a fotografia da actriz.
E a Alexandra diz:
“Quando é que vais aprender que o amor é olhar alguém de frente, e não é fugir de ninguém?”
E eu não respondo porque estou a olhar para o poster, enorme, desconfortavelmente grande, e acondicionado como se fosse um documento muito importante: não posso dobrá-lo, nem danificá-lo porque é único. Contudo, não consigo descortinar ali a cara da actriz.
E estou perplexa, sem saber como resolver aquilo. Depois digo ao Zé:
“Não podes dobrar o cartaz”
Mas ele já o tinha guardado dentro da carteira dos documentos.
E depois, eu e o Zé passeamos juntos por uma cidade. Vamos de viagem para o Sul passando pelo Norte. É uma viagem rápida.
[...]
Ouro, muito ouro escondido por ali
Noite de 26 para 27 de Fevereiro de 1999
No campo, espalhados entre as árvores, estão os lobos e também um urso. Uma rapariga chinesa tenta montar um avião. As asas do avião são de plástico e encaixam-se, peça a peça. Por isso e à medida que a rapariga as monta, vão-se aqui e ali, desenfiando nos seus componentes. E ela com aquela paciência chinesa de rapariga chinesa, volta a pôr as patilhas no lugar das ranhuras, e o trabalho prossegue.
E o homem diz:
“Detesto dizer isto, mas para levantares voo temos de ir já embora, ao encontro do Inverno, por causa dos ventos. É preciso apanhar ventos fortes para levantares voo.”
E então entramos todos para o carro. O carro é uma plataforma de madeira aberta, como alguns vagões de carga de algumas composições de comboio. Os cães saltam lá para dentro, menos um que fica ao pé de uma árvore. Esse não se quer ir embora e está ofendido. O urso salta para cima do estrado, e depois salta outra vez para o chão, para o outro lado do caminho e sobe a uma colina.
E eu penso “por este andar nunca mais daqui saímos”.
E o homem diz:
“Vamos mesmo ter de partir”.
O urso volta para dentro do estrado e o outro cão fica para trás. Agora o carro vai muito depressa. E entramos numa cidade, e essa cidade é da minha infância, embora diferente como acontece nos sonhos. E enquanto andamos, muito depressa, mas não tão depressa que seja perigoso, vejo pessoas a passearem os seus cães pelas trelas. Algumas levam vários cães ao mesmo tempo. Vejo dois cães a correrem, ao longe, atrás de nós, e penso:
“Um deles será o lobo que ficou para trás?”
Mas depois percebo que não, porque é muito mais pequeno e está com outro cão. Mas sei que ele não se perde de nós, esteja onde estiver, porque a cidade está mais próximo do que parecia.
[...]
E agora estou a subir a Rua da Misericórdia, já depois do Solar do Vinho do Porto. Um homem alto mete-se comigo. É quase noite. Acho-lhe graça, e estou com muita curiosidade de saber para onde é que ele me leva. Entramos para um pátio grande e nesse pátio há um edifício bastante velho. Agora quero-me vir embora, mas o homem é alto e muito mais forte do que eu. Quando estavamos dentro do quarto eu digo:
“Quero doces”
E ele sai para ir buscar-me doces, e eu vou à janela que dá para uma varanda, e penso:
“Vou saltar”
E salto. Mas é mais alto do que eu pensava, porque não é o primeiro andar, é o segundo. Tenho de passar pela varanda do andar debaixo e agarrar-me aos ferros, mas não me importo. Salto para o chão, começo a correr e a contornar o edifício para fugir dali. Mas acabo por cair, praticamente, nos braços do homem, maso homem não me agarra porque tem os braços cheios de doces. E eu rio-me de nervos, porque ele tapa-me a saída, e começo a olhar a toda a volta para ver por onde posso fugir. Eu quero fugir dele.
Mas agora há muito mais gente naquele lugar. E alguém pôs a mesa, é uma mesa comprida onde se sentam várias pessoas. E é uma mesa quadrangular. Há uma rainha, sentada à cabeceira da mesa, do meu lado esquerdo. Eu estou a comer o doce que o homem me deu, e é um doce muito bom. À minha frente alguém come o mesmo género de doce. Comemos lentamente, a saborear, por prazer e sem fome. Algumas pessoas porém, comem vorazmente. Algumas comem com as mãos. A mesa está repleta de iguarias. A rainha come bem, mas sem pressa, e prova mesmo mais coisas do que nós. Mas o meu doce é grande, e quando chega ao fim eu não quero mais nada daquela mesa. Então levanto-me e vou-me embora.
Contorno o edifício, mas agora no sentido oposto ao que tinha feito para fugir do homem. O edifício é rectangular, e na parte de trás há campo à nossa volta. Alguém diz que já pode revelar onde está escondido o ouro. Porque há muito ouro escondido ali. Por isso eu nunca me quis desfazer daquele prédio. E então, alguém que já morrera, ou estava a morrer, tinha transmitido o segredo à velha criada da família: o ouro estava todo no sótão.
E eu fico muito espantada porque o ouro esconde-se sempre no chão, sob a terra, em covas grandes e fundas. Então vamos ao sótão e levantamos as tábuas mas não encontramos lá ouro nenhum. E o forro do sótão é tão fino que eu penso:
“Aqui não é possível esconder ouro”,
E volto para a rua. Há cozinhas ao ar livre e está a chover. É uma chuvinha muito leve. E as cozinhas ao ar livre parecem cozinhas de acampamento, com o fogo dentro de pequenos muros de pedra, e as panelas tapadas, e uma delas ao lume, para a chuva não entrar dentro dos alimentos. As panelas são muito antigas e estão enegrecidas pelas chamas. E à minha direita, e à direita dessa cozinha, há um poço. E a criada velha está cozinhar. Eu acho que as cozinhas são fora de casa porque os edifícios são antigos e é preciso evitar o perigo do fogo. E pergunto à mulher idosa se a informação sobre o ouro está certa, ou se tinha sido correctamente transmitida, porque no sótão não há lá nada. E ela diz:
“O ouro deve estar sob a pia da água. É uma bacia em pedra.”
E eu digo:
“Não está lá nenhuma pia de água em pedra”.
E ela diz:
“Pois não, porque eu trouxe-a cá para fora, que fica muito melhor.”
E mostra-ma, e é uma estrutura antiga, parece retirada de uma igreja muito primitiva. Está escavada num bloco único de mármore. E eu digo:
“É muito bonita.”
E também gosto das panelas muito antigas e enegrecidas. Acho-as lindas. E a criada de família diz:
“Pois é, e a comida fica deliciosa feita assim.”
No campo, espalhados entre as árvores, estão os lobos e também um urso. Uma rapariga chinesa tenta montar um avião. As asas do avião são de plástico e encaixam-se, peça a peça. Por isso e à medida que a rapariga as monta, vão-se aqui e ali, desenfiando nos seus componentes. E ela com aquela paciência chinesa de rapariga chinesa, volta a pôr as patilhas no lugar das ranhuras, e o trabalho prossegue.
E o homem diz:
“Detesto dizer isto, mas para levantares voo temos de ir já embora, ao encontro do Inverno, por causa dos ventos. É preciso apanhar ventos fortes para levantares voo.”
E então entramos todos para o carro. O carro é uma plataforma de madeira aberta, como alguns vagões de carga de algumas composições de comboio. Os cães saltam lá para dentro, menos um que fica ao pé de uma árvore. Esse não se quer ir embora e está ofendido. O urso salta para cima do estrado, e depois salta outra vez para o chão, para o outro lado do caminho e sobe a uma colina.
E eu penso “por este andar nunca mais daqui saímos”.
E o homem diz:
“Vamos mesmo ter de partir”.
O urso volta para dentro do estrado e o outro cão fica para trás. Agora o carro vai muito depressa. E entramos numa cidade, e essa cidade é da minha infância, embora diferente como acontece nos sonhos. E enquanto andamos, muito depressa, mas não tão depressa que seja perigoso, vejo pessoas a passearem os seus cães pelas trelas. Algumas levam vários cães ao mesmo tempo. Vejo dois cães a correrem, ao longe, atrás de nós, e penso:
“Um deles será o lobo que ficou para trás?”
Mas depois percebo que não, porque é muito mais pequeno e está com outro cão. Mas sei que ele não se perde de nós, esteja onde estiver, porque a cidade está mais próximo do que parecia.
[...]
E agora estou a subir a Rua da Misericórdia, já depois do Solar do Vinho do Porto. Um homem alto mete-se comigo. É quase noite. Acho-lhe graça, e estou com muita curiosidade de saber para onde é que ele me leva. Entramos para um pátio grande e nesse pátio há um edifício bastante velho. Agora quero-me vir embora, mas o homem é alto e muito mais forte do que eu. Quando estavamos dentro do quarto eu digo:
“Quero doces”
E ele sai para ir buscar-me doces, e eu vou à janela que dá para uma varanda, e penso:
“Vou saltar”
E salto. Mas é mais alto do que eu pensava, porque não é o primeiro andar, é o segundo. Tenho de passar pela varanda do andar debaixo e agarrar-me aos ferros, mas não me importo. Salto para o chão, começo a correr e a contornar o edifício para fugir dali. Mas acabo por cair, praticamente, nos braços do homem, maso homem não me agarra porque tem os braços cheios de doces. E eu rio-me de nervos, porque ele tapa-me a saída, e começo a olhar a toda a volta para ver por onde posso fugir. Eu quero fugir dele.
Mas agora há muito mais gente naquele lugar. E alguém pôs a mesa, é uma mesa comprida onde se sentam várias pessoas. E é uma mesa quadrangular. Há uma rainha, sentada à cabeceira da mesa, do meu lado esquerdo. Eu estou a comer o doce que o homem me deu, e é um doce muito bom. À minha frente alguém come o mesmo género de doce. Comemos lentamente, a saborear, por prazer e sem fome. Algumas pessoas porém, comem vorazmente. Algumas comem com as mãos. A mesa está repleta de iguarias. A rainha come bem, mas sem pressa, e prova mesmo mais coisas do que nós. Mas o meu doce é grande, e quando chega ao fim eu não quero mais nada daquela mesa. Então levanto-me e vou-me embora.
Contorno o edifício, mas agora no sentido oposto ao que tinha feito para fugir do homem. O edifício é rectangular, e na parte de trás há campo à nossa volta. Alguém diz que já pode revelar onde está escondido o ouro. Porque há muito ouro escondido ali. Por isso eu nunca me quis desfazer daquele prédio. E então, alguém que já morrera, ou estava a morrer, tinha transmitido o segredo à velha criada da família: o ouro estava todo no sótão.
E eu fico muito espantada porque o ouro esconde-se sempre no chão, sob a terra, em covas grandes e fundas. Então vamos ao sótão e levantamos as tábuas mas não encontramos lá ouro nenhum. E o forro do sótão é tão fino que eu penso:
“Aqui não é possível esconder ouro”,
E volto para a rua. Há cozinhas ao ar livre e está a chover. É uma chuvinha muito leve. E as cozinhas ao ar livre parecem cozinhas de acampamento, com o fogo dentro de pequenos muros de pedra, e as panelas tapadas, e uma delas ao lume, para a chuva não entrar dentro dos alimentos. As panelas são muito antigas e estão enegrecidas pelas chamas. E à minha direita, e à direita dessa cozinha, há um poço. E a criada velha está cozinhar. Eu acho que as cozinhas são fora de casa porque os edifícios são antigos e é preciso evitar o perigo do fogo. E pergunto à mulher idosa se a informação sobre o ouro está certa, ou se tinha sido correctamente transmitida, porque no sótão não há lá nada. E ela diz:
“O ouro deve estar sob a pia da água. É uma bacia em pedra.”
E eu digo:
“Não está lá nenhuma pia de água em pedra”.
E ela diz:
“Pois não, porque eu trouxe-a cá para fora, que fica muito melhor.”
E mostra-ma, e é uma estrutura antiga, parece retirada de uma igreja muito primitiva. Está escavada num bloco único de mármore. E eu digo:
“É muito bonita.”
E também gosto das panelas muito antigas e enegrecidas. Acho-as lindas. E a criada de família diz:
“Pois é, e a comida fica deliciosa feita assim.”
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